quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Vinténs - II


Algum dia...

            Ao que, ela finalmente disse:
            “por ora, ainda quero investir em ser feliz...”
            E ele retrucou:
            “ainda bem que é só por ora... terei alguma chance mais tarde, não?
            Ambos riram e, pelo resto daquele primeiro jantar juntos, o silêncio perdurou, cada um deles pensando no exato sentido da frase que o outro dissera.



 Clichês

            Ele veio com a cantada padrão clichê para cima dela. Cantada ridícula, hilária, absurda. Antes de reagir como reagiria normalmente, ela se dispôs a olhar a ele de cima para baixo (talvez a justa encarada antes de iniciar o ritual do esculacho que ele mereceria...). Mas, a olhada mudou tudo... e, ao final, sorriu. Ela, pois ele já sorria há tempos
            Ele podia. E ela queria...
            Antes que ele abrisse de novo a boca, ela o levou para o seu apartamento e, lá, os clichês não entraram.





Lambança


            Lembra-se de todas aquelas lembranças? De nossos momentos todos, de nossas viagens, daqueles jantares maravilhosos? Lembra-se deles? Da música que compusemos juntos, das estrelas que não cansamos de contar, das mãos dadas, dos dedos entrelaçados? Do amor na areia úmida? Lembra-se deles? Dos planos? e que planos arrojados, né? E dos planos cotidianos? e dos tresloucados..., lembra? Lembra-se das risadas todas no final da madrugada regada a Tannat e Gruyère?
            Lembra-se?
            Pois é, esqueci-me de tudo! E foi de propósito!



pRima

            “Mexe nessa rima que ficará rica...” disse o poeta rico ao aprendiz.
            Ele mexeu, mas não ficou rico.
            Ao que o poeta retrucou: “dinheiro não é tudo, rapaz, case com sua prima que será feliz...”

            E, desta vez, acertou!

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

O próximo trem.



Cena 1. Final da década de 70, três mochileiros em uma estação de trem perdida no interior do norte da Argentina. Um longo caminho percorremos até lá e outro tanto ainda por vir, nem desconfiávamos naquele momento. A correria (im)prevista até a Patagônia, nosso objetivo, mas, se assim o era, porque não fomos direto ao sul e percorremos tanta terra na direção oposta? até hoje me pergunto isso. A longa volta atribulada e tudo o mais, seguir, seguir em frente sem muito pensar, assim íamos naqueles dias, essa era a nossa direção. Mas, naquele exato momento, olhávamos desesperançados o movimento de vai e vem dos trens de carga à nossa frente, que de passageiros já não os havia mais. Os três mochileiros, já cansados e famintos... um deles ao menos. Eu.

Cena 2. Alguns anos se passaram, tanta coisa no meio, e um dos mochileiros está estudando na Inglaterra, Liverpool. Liverpool, nunca contei? Um professor, cuja esposa falava um pouco de português e queria treinar com um nativo, me convida para jantar e lá se vai o mochileiro, trem para o subúrbio, ele e o professor. O professor saca um livro para ler na curta viagem de meia hora até a sua casa, era o que fazia todos os dias, por que não fazer isso também hoje, mesmo acompanhado do aluno recém chegado? E o desprevenido ex-mochileiro, sem livro à mão, apenas olha pela janela os subúrbios, melhor assim, pensei em voz baixa. Os dois parecem cansados depois de um longo dia. E, um ao menos, também faminto...

Cena 1. Um dos mochileiros, outro, conversa com os guardas da estação, os trens de carga ainda para lá e para cá, para cá e para acolá... Tudo parece tranquilo, fora isso. Tínhamos chegado à estação sem planejamento algum e na expectativa de se conseguir um trem, a forma barata de viajar por aqui. Mas nada de trem de passageiros àquela hora para onde queríamos ir, na direção do Chile, pelo norte da Argentina. Mas, se íamos para a Patagônia, por que esse caminho? Tanto tempo e ainda estou confuso...

Cena 2. Um passeio na praia antes de tudo, antes do jantar na casa do professor, um passeio de casaco e sapato, de que outra maneira se vai à praia em Liverpool? As centenas de árvores inclinadas pelo vento constante chamam a atenção do ex-mochileiro.  O jantar, lembro-me de um fora que dei, não o assunto pois isso desapareceu da memória, lembro apenas que o ex-mochileiro falou demais, em um inglês quebrado, confuso, medíocre, um fora ou um mal entendido? um fora, sim, sem dúvida alguma. A janta, os queijos depois dela (se os franceses comem o queijo depois do doce, os ingleses comem o queijo antes, ou seria ao contrário? Não importa...). O café na sala, só o professor e eu, já não veria mais hoje nem a esposa, nem os filhos, que tinham desaparecido depois do queijo ou da sobremesa. Eu já tinha jantado outras vezes na casa do meu orientador, sabia o ritual inglês, mas não todo, muito a aprender ainda. Um xerez após o café, um café antes do xerez.

Cena 1. Logo o mochileiro, o outro, volta esbaforido e nos comunica, aos dois mochileiros largados em suas preguiças, que o trem, esse daí de frente, esse de carga? sim, ele mesmo, o de carga e que lentamente começa a se mover, que ele vai na direção que queremos. Para onde é que é mesmo? Ora, para onde o nariz aponta... De longe, o guarda nos observa pronto a negar para quem perguntar que fora ele que nos dera a dica sobre o trem que partia. Mas não precisará dizer, não precisará negar, a estação está vazia a não ser por ele, a não ser pelos trens lentamente se movendo por lá, e que parecem se mover sem ninguém no comando. E a não ser, é claro, pelos mochileiros que agora saímos em desabalada correria em direção ao trem, parece até pastelão, ver o gordinho aqui correndo atrás de um trem de carga, carregando a pesada mochila redonda, quase que caíram todos ao chão, esburacado e pedregoso. Mas pegamos o trem, subimos nele quando ele já estava por demais acelerado, o meu coração também, o trem que nos levará para a direção que queremos. Ainda dormiríamos nele, ainda quase seríamos descobertos em uma estação futura, ainda muita coisa, ainda...

Cena 2. Café, xerez, pouca conversa, e o professor repentinamente se levanta, olha o seu relógio e avisa:
            -... o próximo trem para a cidade sai em dez minutos...
Acabou o tempo da visita, sinal dado, sinal recebido. Levanto-me como esperado, não se deve desprezar os rituais, o ex-mochileiro agradece rapidamente, despedimo-nos o professor e eu, e os dez minutos são mais do que suficientes para se chegar ao trem que passa a duas quadras dali. O professor sabia disso, que daria tempo, ele próprio necessita só de exatos sete minutos e vinte e três segundos. Mas, a mim, se pudesse, teria ido mais lentamente até a estação, talvez pensando na vida, que livro não trouxe, talvez me perguntando o que tanto tinha mudado desde o dia em que subi, na correria, em um trem de carga em movimento. E teria perdido esse, tão distraído estaria, o que importa? Mas não o perdi...

Perdi sim alguns trens na vida, alguns até literalmente, mas esses dois, me lembro bem, esses dois eu não os perdi e, pelo que me lembro, foram na direção que almejava naqueles momentos. Outros, no futuro, perdidos ou não, sei lá se foram... ou sequer se iriam...

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Scorza, o invisível



Por sediar um Centro de Estudos Latinos Americanos, a Universidade de Liverpool possui uma excelente biblioteca voltada à literatura de nosso continente, inclusive a brasileira (desse Centro, participou um grande estudioso de Machado de Assis, John Gledson, mas isso é outra estória...). Não por menos, eu a frequentei regularmente nos quatro anos em que lá estudei. Foi lá que tive acesso a muitos clássicos da literatura brasileira, e que não tinha ainda lido (duro confessar isso, sei...). Grandes Sertões Veredas foi um que li na sala de meu pequeno apartamento na residência da universidade, enquanto esperava, olhando pelas amplas janelas, o mundo se acalmar (coisa rara em Liverpool).
            Lá, também, eu tive a oportunidade de conhecer o que se produziu em nossos países vizinhos, que a literatura lationamericana, em especial a do realismo fantástico, ainda estava em alta (o Cem anos de solidão é de 1967...). E foi lá que li pela primeira vez Scorza, o escritor peruano nascido em 1928 em Lima e morto em Madrid em 1983, ele que hoje está meio que esquecido, infelizmente. Devorei tudo o que a bilblioteca da universidade tinha dele, isto é, quase toda a sua produção literária.
            Sua obra mais impactante divide-se em cinco livros chamados por ele de “baladas”. Começa com Rodoble por Rancas em 1970, passa por História de Garabombo el invisible (1972), El Jinete Insomne (1977), Cantar de Agapito Robles (1977) até o último, La Tumba del Relámpago publicado em 1979. Escrito no melhor estilo do realismo fantástico, há quem considere esses livros muito datados por centrar-se nas lutas camponesas que tomaram conta do Perú nas décadas de 60.
            Talvez por isso, e também por conta da sombra e oposição do onipresente Vargas Llosa no Perú, a literatura de Scorza foi perdendo espaço por lá, principalmente depois da guinada para a direita imposta ao nosso continente. Por motivos que talvez não sejam afinal tão estranhos, o seu sucesso literário se deu muito mais na Espanha que no continente americano, e não só por conta dos sombrios anos que vivemos por essas bandas. Sucesso e reconhecimento são coisas, por vezes, inexplicáveis, assim como o são o insucesso e o esquecimento.
            De minha parte, de tudo o que li em espanhol naquela época de Inglaterra, as baladas de Scorza foram as que mais me marcaram. Deixando de lado até a, talvez polêmica, temática, muito me impressionou sua capacidade inventiva e o perfeito domínio técnico da narrativa escrita. Impressionou-me, como leitor e naquele meu particular momento em que buscava eu mesmo começar a escrever, muito mais que a escrita do agora Nobel Vargas Llosa, mas é claro que paro por aqui essa comparação, que não tenho a capacitação necessária para fazer uma isenta e acadêmica análise da produção deles. Nessas horas, preservamos a primeira impressão, por vezes muito mais interessante que a análise profunda posterior.
            Tempos depois, procurei comprar esses livros (no original, claro) e sempre tive dificuldades. Por isso, aproveitando minha visita a Lima em dezembro de 2014, fui atrás deles. Não tinha muito tempo disponível (pouco mais que uma tarde livre no congresso em que estava) e, nesse parco tempo, conhecer a cidade toda. E, por falta de tempo aqui também, deixo outras considerações de Lima para outro momento e foco em minha busca do Scorza, o invisível.
            Ao lado da praça central de Lima, por uma rua à direita de quem olha o Palácio do Governo, chega-se à Casa de la Literatura Peruana. Foi, inesperadamente, minha primeira parada nessa busca, que se mostrou ao final infrutífera. Ao entrar na Casa (aliás, uma ex-estação ferroviária), vi que no andar de baixo havia uma biblioteca e lá fui eu. Em meu portunhol corrente, entabulei uma conversa com o bibliotecário que, ao perceber que meu interesse era o Scorza (e não o Vargas Llosa, como deve ser a maior parte das vezes), mostrou-se animado em me contar muitos detalhes sobre ele, e muito do que falou ia de encontro ao que eu próprio achava, mas contou-me coisas que desconhecia como, por exemplo, que Scorza virou um editor no final da vida publicando muita coisa que hoje consideraríamos literatura independente. De sua militância como artista, de seu empenho como difusor da literatura.
            Perguntei-lhe sobre onde conseguir os livros do Scorza e ele me indicou duas livrarias, as principais da cidade, mas não foi muito otimista quanto a eu conseguir comprar. Disse-me que uma universidade tinha republicado, tempos atrás, o Redoble por Rancas, que havia a intenção de publicar todas as baladas, mas que achava que eles ainda não o haviam feito.
            Apesar do pessimismo, fui sim às duas livrarias que ele me indicou, e que nem eram muito longe de onde eu estava. Em uma delas, fui enviado a uma terceira mais, mas nem é preciso dizer (para quem prestou atenção ao título da crônica) que saí de mãos abanando delas todas. Por vezes, parecia que falava de um nome que poucos reconheciam.
            Apesar de meu pequeno tempo em Lima, gostei muito do clima da cidade (não do trânsito...), mas sai decepcionado de lá por conta de não ter conseguido comprar os livros que tanto queria na minha biblioteca.
            Um par de meses atrás, consegui, importando da Espanha, um exemplar do Redoble, mas foi o único. Ficarei nas saudades, por enquanto, do tempo de descanso de meus estudos matemáticos para ler Scorza frente às amplas janelas de meu apartamento em Liverpool...

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Chuvas - II



[[Esse é mais um conto de meu primeiro livro, “Contos que conto”, que estou republicando aqui]].  


Chuvas - Temporal


Ele olhava pela janela, copo no mão, tarde da noite; pensando, olhava pela janela a forte chuva que caía. Gostava de ver a chuva a cair e de ouvir o barulho que ela faz quando cai. Algo que o fazia lembrar de sua infância. A chuva, o barulho da chuva, seu gosto, seu cheiro.
            Pensava e lembrava.
            Da varanda veio um barulho de passos. Como se alguém estivesse a correr da chuva, a se esconder dela como se a chuva fosse algo que assustasse. Estava sozinho na casa principal e pensou que pudesse ser o caseiro a vir avisar algo, a pedir algo, a conversar.
            Sem receios, abriu a porta e viu em um canto da varanda uma garota, cabelo escorrido de molhado, olhar assustado, com frio. Assustou-se.
            Ficaram um pouco a olhar um para o outro. Ele impressionado com o jeito gracioso dela e ela assustada. De repente, notou que ainda trazia o copo à mão e percebeu que poderia oferecer-lhe um trago que fosse, uma bebida que fosse, que fosse ao menos prá afugentar um pouco o frio e o susto. Convidou-a prá entrar e tomar algo. Ela aceitou sem dizer palavra. Na realidade, ele não ouviria nunca dela uma palavra sequer.
            Quando ela passou por ele, temerosa e toda encolhida, toda molhada e tímida, ele teve pena. Foi à cozinha buscar um copo, encheu-o de uísque e deu a ela, que timidamente tomou-o da mão dele e tomou dois longos goles.
            Agora ele está a olhar para ela sem saber ao certo o que fazer. Seu vestido a pingar no carpete, toda encolhida e sem dizer nada, a segurar o copo com as duas mãos de tal jeito que faz supor que é de lá que ela quer tirar todo o calor que necessita para se aquecer. Um olhar sem olhar nada, um jeito gracioso de menina calada, calada. Perguntou-lhe coisas com o olhar, com gestos e até com a boca. Perguntou-lhe coisas e só recebeu o silêncio como resposta.
            Foi à janela a fingir olhar a chuva e a pensar no que fazer. Talvez pudesse oferecer-lhe um quarto por esta noite ou levá-la pra casa, se ao menos ela dissesse uma palavra, um gesto, um algo compreensível.
            Virou-se e ela parecia dormir, toda encolhida no canto da sala, o cabelo escorrido a cobrir sua face. Resolveu ajeitá-la no sofá. Quando chegou perto e quando estendeu as mãos a buscá-la, a carrega-la para o sofá ela abriu os olhos, não mais assustados, meigos olhos a olharem e ante o recuo dele procurou-o e abraçou-o carinhosamente de tal jeito que parecia querer extrair todo o calor dele para aquecer-se.
            Levantou-a. Ela encostou sua cabeça no ombro dele e ele sentiu seu rosto molhar-se com o contato do cabelo dela, e ele sentiu o mesmo cheiro que a chuva tem quando está a cair e ele sentiu o mesmo cheiro que o faz se lembrar da infância.
            De volta ao presente voltou a perguntar-lhe de onde é que ela vinha, se podia ajudar. Ela continuou muda, abraçada a ele, a roubar-lhe o calor. Por um instante, ela lembrou-lhe a filha e abraçou-a como se isto pudesse trazê-la de volta. Gastou um momento pensando nisto.
            Sentaram-se os dois no sofá e por um tempo ficaram a se aquecer. Com a roupa um pouco molhada ele é que precisava agora se aquecer; de repente ela se levantou o olhou ao redor como se procurasse uma misteriosa porta. Avisou-lhe que o banheiro ficava no andar de cima e ela se foi a sorrir, agradecendo.
            Tomou um golo de uísque, acabou-o, levantou-se, encheu o copo, voltou a sentar no sofá, tomou um gole, acabou, levantou-se do sofá, foi encher o copo quando pensou que algo de errado poderia ter acontecido. Demorava demais.
            Subiu as escadas com um pouco de medo, é certo. Olhou o banheiro e este estava vazio. Quando passou pelo quarto viu que ela estava deitada lá, nua a se enroscar e se aquecer em seus lençóis.
            Sorriu dela e de si mesmo.
            Quando ia saindo do quarto, deu uma última olhada e ela o olhava também, aquele olhara que ele nunca iria esquecer, nem tentou é certo e aquele olhar lhe dizia mansa e timidamente que a cama dava para dois, para dois se aquecerem e que por favor não se vá que eu tenho muito frio e muito medo e que a chuva ainda está a cair, ouça o barulho, sinta o cheiro e tudo aquilo que aquele olhar gracioso disse e tudo aquilo que um olhar gracioso costuma dizer a boca resolve se calar.
            Agora os dois estão deitados nus a se aquecerem e a ouvirem o barulho que a chuva faz quando cai no telhado e ele está a pensar que ficar abraçado a alguém em algum canto quente é a melhor coisa a se fazer nestes dias de chuva forte. Lembranças da infância, é certo. O barulho da chuva. A segurança de um abraço. O cheiro da chuva. O consolo de um sorriso. Ele a pensar nisto tudo e a lembras, mas a ela, o que é que ela pensava todo este tempo? pensou ele.
            Seu longo cabelo molhado já encharcara os travesseiros e ela agora se mexe e se ajeita e ele sente sua mão a acaricia-lo, lentamente a agradá-lo a aquecê-lo e ele agora já está a acaricia-la e a tocá-la e a aquecê-la e eles agora já estão a se abraçarem e se beijarem timidamente e sua mão percorre todo o corpo dela e o corpo dela se estremece todo e se arrepia e o dele também e os dois agora já se procuram para se beijarem e fazerem aquilo que é a melhor coisa nestas longas noites de chuva forte. Nestas escuras noites de chuva em que perdia o sono. Lembranças;
            O barulho da chuva. O barulho que ela faz nesta noite de chuva penetrou em seus ouvidos e o fez estremecer e o fez se sentir feliz a amá-la, a amar seus gemidos ouvindo a chuva a cair, a amar seus olhos fechados e a se sentir feliz a acariciá-la e a aquecê-la e agora também já se sente aquecido e acolhido e feliz e ele se sente molhado, seu rosto a deslizar uma gota d’água, uma gota d’água a deslizar lentamente por todo o seu rosto. A deslizar pelo seu rosto da mesma maneira que os dedos dela o fizeram com a intenção de conhece-lo e conheceu-o tocando e percorrendo lentamente o seu rosto que agora produz uma outa gota e outra mais que finalmente cai no rosto dela que agora ri com aquele sorriso que só se tem nestas horas e ele pensa que seus olhos hão de estar sorrindo também por detrás das pálpebras fechadas a acompanhar o sorriso dos lábios e geme e gemem enquanto se amam e sente a gota d’água no seu rosto a escorrer por todo seu rosto e de repente os dois estão encharcado de suor, dele e dela, encharcados da água da chuva que para todos os efeitos agora cai dentro do quarto. A chuva a deslizar pelas paredes, a encharcar os lençóis, a empoçar no chão, a chover e a molhar todo o corpo, os corpos  unidos a gozarem e a pensarem, ao menos ele, que esta é a melhor maneira de se passar uma noite como esta, ouvindo o barulho da chuva junto ao cheiro dela. O medo, o cheiro, o barulho, as lembranças da infância.

            Amanheceu e ele não a encontrou mais lá. Nunca mais, por um instante que fosse, ele iria tocá-la, revê-la que fosse. Dela só sobrou o cheiro, este cheiro que sempre sentia nas fortes noites de chuva. Ainda chovia forte.