[[Esse é mais um conto de meu primeiro livro, “Contos que conto”, que estou republicando aqui]].
Chuvas - Temporal
Ele olhava pela janela, copo no mão, tarde da noite;
pensando, olhava pela janela a forte chuva que caía. Gostava de ver a chuva a
cair e de ouvir o barulho que ela faz quando cai. Algo que o fazia lembrar de
sua infância. A chuva, o barulho da chuva, seu gosto, seu cheiro.
Pensava
e lembrava.
Da
varanda veio um barulho de passos. Como se alguém estivesse a correr da chuva,
a se esconder dela como se a chuva fosse algo que assustasse. Estava sozinho na
casa principal e pensou que pudesse ser o caseiro a vir avisar algo, a pedir
algo, a conversar.
Sem
receios, abriu a porta e viu em um canto da varanda uma garota, cabelo
escorrido de molhado, olhar assustado, com frio. Assustou-se.
Ficaram
um pouco a olhar um para o outro. Ele impressionado com o jeito gracioso dela e
ela assustada. De repente, notou que ainda trazia o copo à mão e percebeu que
poderia oferecer-lhe um trago que fosse, uma bebida que fosse, que fosse ao
menos prá afugentar um pouco o frio e o susto. Convidou-a prá entrar e tomar
algo. Ela aceitou sem dizer palavra. Na realidade, ele não ouviria nunca dela
uma palavra sequer.
Quando
ela passou por ele, temerosa e toda encolhida, toda molhada e tímida, ele teve
pena. Foi à cozinha buscar um copo, encheu-o de uísque e deu a ela, que
timidamente tomou-o da mão dele e tomou dois longos goles.
Agora
ele está a olhar para ela sem saber ao certo o que fazer. Seu vestido a pingar
no carpete, toda encolhida e sem dizer nada, a segurar o copo com as duas mãos
de tal jeito que faz supor que é de lá que ela quer tirar todo o calor que
necessita para se aquecer. Um olhar sem olhar nada, um jeito gracioso de menina
calada, calada. Perguntou-lhe coisas com o olhar, com gestos e até com a boca.
Perguntou-lhe coisas e só recebeu o silêncio como resposta.
Foi à
janela a fingir olhar a chuva e a pensar no que fazer. Talvez pudesse
oferecer-lhe um quarto por esta noite ou levá-la pra casa, se ao menos ela
dissesse uma palavra, um gesto, um algo compreensível.
Virou-se
e ela parecia dormir, toda encolhida no canto da sala, o cabelo escorrido a
cobrir sua face. Resolveu ajeitá-la no sofá. Quando chegou perto e quando
estendeu as mãos a buscá-la, a carrega-la para o sofá ela abriu os olhos, não
mais assustados, meigos olhos a olharem e ante o recuo dele procurou-o e
abraçou-o carinhosamente de tal jeito que parecia querer extrair todo o calor
dele para aquecer-se.
Levantou-a.
Ela encostou sua cabeça no ombro dele e ele sentiu seu rosto molhar-se com o
contato do cabelo dela, e ele sentiu o mesmo cheiro que a chuva tem quando está
a cair e ele sentiu o mesmo cheiro que o faz se lembrar da infância.
De volta
ao presente voltou a perguntar-lhe de onde é que ela vinha, se podia ajudar.
Ela continuou muda, abraçada a ele, a roubar-lhe o calor. Por um instante, ela
lembrou-lhe a filha e abraçou-a como se isto pudesse trazê-la de volta. Gastou
um momento pensando nisto.
Sentaram-se
os dois no sofá e por um tempo ficaram a se aquecer. Com a roupa um pouco
molhada ele é que precisava agora se aquecer; de repente ela se levantou o
olhou ao redor como se procurasse uma misteriosa porta. Avisou-lhe que o
banheiro ficava no andar de cima e ela se foi a sorrir, agradecendo.
Tomou um
golo de uísque, acabou-o, levantou-se, encheu o copo, voltou a sentar no sofá,
tomou um gole, acabou, levantou-se do sofá, foi encher o copo quando pensou que
algo de errado poderia ter acontecido. Demorava demais.
Subiu as
escadas com um pouco de medo, é certo. Olhou o banheiro e este estava vazio.
Quando passou pelo quarto viu que ela estava deitada lá, nua a se enroscar e se
aquecer em seus lençóis.
Sorriu
dela e de si mesmo.
Quando
ia saindo do quarto, deu uma última olhada e ela o olhava também, aquele olhara
que ele nunca iria esquecer, nem tentou é certo e aquele olhar lhe dizia mansa
e timidamente que a cama dava para dois, para dois se aquecerem e que por favor
não se vá que eu tenho muito frio e muito medo e que a chuva ainda está a cair,
ouça o barulho, sinta o cheiro e tudo aquilo que aquele olhar gracioso disse e
tudo aquilo que um olhar gracioso costuma dizer a boca resolve se calar.
Agora os
dois estão deitados nus a se aquecerem e a ouvirem o barulho que a chuva faz
quando cai no telhado e ele está a pensar que ficar abraçado a alguém em algum
canto quente é a melhor coisa a se fazer nestes dias de chuva forte. Lembranças
da infância, é certo. O barulho da chuva. A segurança de um abraço. O cheiro da
chuva. O consolo de um sorriso. Ele a pensar nisto tudo e a lembras, mas a ela,
o que é que ela pensava todo este tempo? pensou ele.
Seu
longo cabelo molhado já encharcara os travesseiros e ela agora se mexe e se
ajeita e ele sente sua mão a acaricia-lo, lentamente a agradá-lo a aquecê-lo e
ele agora já está a acaricia-la e a tocá-la e a aquecê-la e eles agora já estão
a se abraçarem e se beijarem timidamente e sua mão percorre todo o corpo dela e
o corpo dela se estremece todo e se arrepia e o dele também e os dois agora já
se procuram para se beijarem e fazerem aquilo que é a melhor coisa nestas
longas noites de chuva forte. Nestas escuras noites de chuva em que perdia o
sono. Lembranças;
O
barulho da chuva. O barulho que ela faz nesta noite de chuva penetrou em seus
ouvidos e o fez estremecer e o fez se sentir feliz a amá-la, a amar seus
gemidos ouvindo a chuva a cair, a amar seus olhos fechados e a se sentir feliz
a acariciá-la e a aquecê-la e agora também já se sente aquecido e acolhido e
feliz e ele se sente molhado, seu rosto a deslizar uma gota d’água, uma gota
d’água a deslizar lentamente por todo o seu rosto. A deslizar pelo seu rosto da
mesma maneira que os dedos dela o fizeram com a intenção de conhece-lo e
conheceu-o tocando e percorrendo lentamente o seu rosto que agora produz uma
outa gota e outra mais que finalmente cai no rosto dela que agora ri com aquele
sorriso que só se tem nestas horas e ele pensa que seus olhos hão de estar
sorrindo também por detrás das pálpebras fechadas a acompanhar o sorriso dos
lábios e geme e gemem enquanto se amam e sente a gota d’água no seu rosto a
escorrer por todo seu rosto e de repente os dois estão encharcado de suor, dele
e dela, encharcados da água da chuva que para todos os efeitos agora cai dentro
do quarto. A chuva a deslizar pelas paredes, a encharcar os lençóis, a empoçar
no chão, a chover e a molhar todo o corpo, os corpos unidos a gozarem e a pensarem, ao menos ele,
que esta é a melhor maneira de se passar uma noite como esta, ouvindo o barulho
da chuva junto ao cheiro dela. O medo, o cheiro, o barulho, as lembranças da
infância.
Amanheceu
e ele não a encontrou mais lá. Nunca mais, por um instante que fosse, ele iria
tocá-la, revê-la que fosse. Dela só sobrou o cheiro, este cheiro que sempre
sentia nas fortes noites de chuva. Ainda chovia forte.
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