quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Chuvas - II



[[Esse é mais um conto de meu primeiro livro, “Contos que conto”, que estou republicando aqui]].  


Chuvas - Temporal


Ele olhava pela janela, copo no mão, tarde da noite; pensando, olhava pela janela a forte chuva que caía. Gostava de ver a chuva a cair e de ouvir o barulho que ela faz quando cai. Algo que o fazia lembrar de sua infância. A chuva, o barulho da chuva, seu gosto, seu cheiro.
            Pensava e lembrava.
            Da varanda veio um barulho de passos. Como se alguém estivesse a correr da chuva, a se esconder dela como se a chuva fosse algo que assustasse. Estava sozinho na casa principal e pensou que pudesse ser o caseiro a vir avisar algo, a pedir algo, a conversar.
            Sem receios, abriu a porta e viu em um canto da varanda uma garota, cabelo escorrido de molhado, olhar assustado, com frio. Assustou-se.
            Ficaram um pouco a olhar um para o outro. Ele impressionado com o jeito gracioso dela e ela assustada. De repente, notou que ainda trazia o copo à mão e percebeu que poderia oferecer-lhe um trago que fosse, uma bebida que fosse, que fosse ao menos prá afugentar um pouco o frio e o susto. Convidou-a prá entrar e tomar algo. Ela aceitou sem dizer palavra. Na realidade, ele não ouviria nunca dela uma palavra sequer.
            Quando ela passou por ele, temerosa e toda encolhida, toda molhada e tímida, ele teve pena. Foi à cozinha buscar um copo, encheu-o de uísque e deu a ela, que timidamente tomou-o da mão dele e tomou dois longos goles.
            Agora ele está a olhar para ela sem saber ao certo o que fazer. Seu vestido a pingar no carpete, toda encolhida e sem dizer nada, a segurar o copo com as duas mãos de tal jeito que faz supor que é de lá que ela quer tirar todo o calor que necessita para se aquecer. Um olhar sem olhar nada, um jeito gracioso de menina calada, calada. Perguntou-lhe coisas com o olhar, com gestos e até com a boca. Perguntou-lhe coisas e só recebeu o silêncio como resposta.
            Foi à janela a fingir olhar a chuva e a pensar no que fazer. Talvez pudesse oferecer-lhe um quarto por esta noite ou levá-la pra casa, se ao menos ela dissesse uma palavra, um gesto, um algo compreensível.
            Virou-se e ela parecia dormir, toda encolhida no canto da sala, o cabelo escorrido a cobrir sua face. Resolveu ajeitá-la no sofá. Quando chegou perto e quando estendeu as mãos a buscá-la, a carrega-la para o sofá ela abriu os olhos, não mais assustados, meigos olhos a olharem e ante o recuo dele procurou-o e abraçou-o carinhosamente de tal jeito que parecia querer extrair todo o calor dele para aquecer-se.
            Levantou-a. Ela encostou sua cabeça no ombro dele e ele sentiu seu rosto molhar-se com o contato do cabelo dela, e ele sentiu o mesmo cheiro que a chuva tem quando está a cair e ele sentiu o mesmo cheiro que o faz se lembrar da infância.
            De volta ao presente voltou a perguntar-lhe de onde é que ela vinha, se podia ajudar. Ela continuou muda, abraçada a ele, a roubar-lhe o calor. Por um instante, ela lembrou-lhe a filha e abraçou-a como se isto pudesse trazê-la de volta. Gastou um momento pensando nisto.
            Sentaram-se os dois no sofá e por um tempo ficaram a se aquecer. Com a roupa um pouco molhada ele é que precisava agora se aquecer; de repente ela se levantou o olhou ao redor como se procurasse uma misteriosa porta. Avisou-lhe que o banheiro ficava no andar de cima e ela se foi a sorrir, agradecendo.
            Tomou um golo de uísque, acabou-o, levantou-se, encheu o copo, voltou a sentar no sofá, tomou um gole, acabou, levantou-se do sofá, foi encher o copo quando pensou que algo de errado poderia ter acontecido. Demorava demais.
            Subiu as escadas com um pouco de medo, é certo. Olhou o banheiro e este estava vazio. Quando passou pelo quarto viu que ela estava deitada lá, nua a se enroscar e se aquecer em seus lençóis.
            Sorriu dela e de si mesmo.
            Quando ia saindo do quarto, deu uma última olhada e ela o olhava também, aquele olhara que ele nunca iria esquecer, nem tentou é certo e aquele olhar lhe dizia mansa e timidamente que a cama dava para dois, para dois se aquecerem e que por favor não se vá que eu tenho muito frio e muito medo e que a chuva ainda está a cair, ouça o barulho, sinta o cheiro e tudo aquilo que aquele olhar gracioso disse e tudo aquilo que um olhar gracioso costuma dizer a boca resolve se calar.
            Agora os dois estão deitados nus a se aquecerem e a ouvirem o barulho que a chuva faz quando cai no telhado e ele está a pensar que ficar abraçado a alguém em algum canto quente é a melhor coisa a se fazer nestes dias de chuva forte. Lembranças da infância, é certo. O barulho da chuva. A segurança de um abraço. O cheiro da chuva. O consolo de um sorriso. Ele a pensar nisto tudo e a lembras, mas a ela, o que é que ela pensava todo este tempo? pensou ele.
            Seu longo cabelo molhado já encharcara os travesseiros e ela agora se mexe e se ajeita e ele sente sua mão a acaricia-lo, lentamente a agradá-lo a aquecê-lo e ele agora já está a acaricia-la e a tocá-la e a aquecê-la e eles agora já estão a se abraçarem e se beijarem timidamente e sua mão percorre todo o corpo dela e o corpo dela se estremece todo e se arrepia e o dele também e os dois agora já se procuram para se beijarem e fazerem aquilo que é a melhor coisa nestas longas noites de chuva forte. Nestas escuras noites de chuva em que perdia o sono. Lembranças;
            O barulho da chuva. O barulho que ela faz nesta noite de chuva penetrou em seus ouvidos e o fez estremecer e o fez se sentir feliz a amá-la, a amar seus gemidos ouvindo a chuva a cair, a amar seus olhos fechados e a se sentir feliz a acariciá-la e a aquecê-la e agora também já se sente aquecido e acolhido e feliz e ele se sente molhado, seu rosto a deslizar uma gota d’água, uma gota d’água a deslizar lentamente por todo o seu rosto. A deslizar pelo seu rosto da mesma maneira que os dedos dela o fizeram com a intenção de conhece-lo e conheceu-o tocando e percorrendo lentamente o seu rosto que agora produz uma outa gota e outra mais que finalmente cai no rosto dela que agora ri com aquele sorriso que só se tem nestas horas e ele pensa que seus olhos hão de estar sorrindo também por detrás das pálpebras fechadas a acompanhar o sorriso dos lábios e geme e gemem enquanto se amam e sente a gota d’água no seu rosto a escorrer por todo seu rosto e de repente os dois estão encharcado de suor, dele e dela, encharcados da água da chuva que para todos os efeitos agora cai dentro do quarto. A chuva a deslizar pelas paredes, a encharcar os lençóis, a empoçar no chão, a chover e a molhar todo o corpo, os corpos  unidos a gozarem e a pensarem, ao menos ele, que esta é a melhor maneira de se passar uma noite como esta, ouvindo o barulho da chuva junto ao cheiro dela. O medo, o cheiro, o barulho, as lembranças da infância.

            Amanheceu e ele não a encontrou mais lá. Nunca mais, por um instante que fosse, ele iria tocá-la, revê-la que fosse. Dela só sobrou o cheiro, este cheiro que sempre sentia nas fortes noites de chuva. Ainda chovia forte.

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