Cena 1. Final da década de 70, três mochileiros em uma estação de trem perdida no interior do norte da Argentina. Um longo caminho percorremos até lá e outro tanto ainda por vir, nem desconfiávamos naquele momento. A correria (im)prevista até a Patagônia, nosso objetivo, mas, se assim o era, porque não fomos direto ao sul e percorremos tanta terra na direção oposta? até hoje me pergunto isso. A longa volta atribulada e tudo o mais, seguir, seguir em frente sem muito pensar, assim íamos naqueles dias, essa era a nossa direção. Mas, naquele exato momento, olhávamos desesperançados o movimento de vai e vem dos trens de carga à nossa frente, que de passageiros já não os havia mais. Os três mochileiros, já cansados e famintos... um deles ao menos. Eu.
Cena
2. Alguns
anos se passaram, tanta coisa no meio, e um dos mochileiros está estudando na
Inglaterra, Liverpool. Liverpool, nunca contei? Um professor, cuja esposa
falava um pouco de português e queria treinar com um nativo, me convida para
jantar e lá se vai o mochileiro, trem para o subúrbio, ele e o professor. O
professor saca um livro para ler na curta viagem de meia hora até a sua casa,
era o que fazia todos os dias, por que não fazer isso também hoje, mesmo
acompanhado do aluno recém chegado? E o desprevenido ex-mochileiro, sem livro à
mão, apenas olha pela janela os subúrbios, melhor assim, pensei em voz baixa.
Os dois parecem cansados depois de um longo dia. E, um ao menos, também
faminto...
Cena
1.
Um dos mochileiros, outro, conversa com os guardas da estação, os trens de
carga ainda para lá e para cá, para cá e para acolá... Tudo parece tranquilo,
fora isso. Tínhamos chegado à estação sem planejamento algum e na expectativa
de se conseguir um trem, a forma barata de viajar por aqui. Mas nada de trem de
passageiros àquela hora para onde queríamos ir, na direção do Chile, pelo norte
da Argentina. Mas, se íamos para a Patagônia, por que esse caminho? Tanto tempo
e ainda estou confuso...
Cena
2. Um
passeio na praia antes de tudo, antes do jantar na casa do professor, um
passeio de casaco e sapato, de que outra maneira se vai à praia em Liverpool?
As centenas de árvores inclinadas pelo vento constante chamam a atenção do
ex-mochileiro. O jantar, lembro-me de um
fora que dei, não o assunto pois isso desapareceu da memória, lembro apenas que
o ex-mochileiro falou demais, em um inglês quebrado, confuso, medíocre, um fora
ou um mal entendido? um fora, sim, sem dúvida alguma. A janta, os queijos
depois dela (se os franceses comem o queijo depois do doce, os ingleses comem o
queijo antes, ou seria ao contrário? Não importa...). O café na sala, só o
professor e eu, já não veria mais hoje nem a esposa, nem os filhos, que tinham
desaparecido depois do queijo ou da sobremesa. Eu já tinha jantado outras vezes
na casa do meu orientador, sabia o ritual inglês, mas não todo, muito a
aprender ainda. Um xerez após o café, um café antes do xerez.
Cena
1. Logo
o mochileiro, o outro, volta esbaforido e nos comunica, aos dois mochileiros largados
em suas preguiças, que o trem, esse daí de frente, esse de carga? sim, ele
mesmo, o de carga e que lentamente começa a se mover, que ele vai na direção
que queremos. Para onde é que é mesmo? Ora, para onde o nariz aponta... De
longe, o guarda nos observa pronto a negar para quem perguntar que fora ele que
nos dera a dica sobre o trem que partia. Mas não precisará dizer, não precisará
negar, a estação está vazia a não ser por ele, a não ser pelos trens lentamente
se movendo por lá, e que parecem se mover sem ninguém no comando. E a não ser,
é claro, pelos mochileiros que agora saímos em desabalada correria em direção
ao trem, parece até pastelão, ver o gordinho aqui correndo atrás de um trem de
carga, carregando a pesada mochila redonda, quase que caíram todos ao chão,
esburacado e pedregoso. Mas pegamos o trem, subimos nele quando ele já estava
por demais acelerado, o meu coração também, o trem que nos levará para a
direção que queremos. Ainda dormiríamos nele, ainda quase seríamos descobertos
em uma estação futura, ainda muita coisa, ainda...
Cena
2. Café,
xerez, pouca conversa, e o professor repentinamente se levanta, olha o seu
relógio e avisa:
-... o
próximo trem para a cidade sai em dez minutos...
Acabou o tempo da visita, sinal dado, sinal recebido.
Levanto-me como esperado, não se deve desprezar os rituais, o ex-mochileiro
agradece rapidamente, despedimo-nos o professor e eu, e os dez minutos são mais
do que suficientes para se chegar ao trem que passa a duas quadras dali. O
professor sabia disso, que daria tempo, ele próprio necessita só de exatos sete
minutos e vinte e três segundos. Mas, a mim, se pudesse, teria ido mais
lentamente até a estação, talvez pensando na vida, que livro não trouxe, talvez
me perguntando o que tanto tinha mudado desde o dia em que subi, na correria,
em um trem de carga em movimento. E teria perdido esse, tão distraído estaria,
o que importa? Mas não o perdi...
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