quinta-feira, 9 de junho de 2016

Chuvas - V


[[Aqui vão mais dois contos de meu primeiro livro, “Contos que conto”, que estou republicando aqui. São os últimos da série de chuvas...]].


Quinta – Sexofone


            Da janela de seu apartamento, décimo-segundo andar, ele costumava ver a cidade iluminada, e como gostava dela nestes momentos em que milhões de luzes de confundem, se completam; e naquele dia, de sua janela, via-se também a chuva, a chuva sobre a cidade que tanto gostava a embaralhar as milhões de luzes que lá luziam; e, distraído, vendo todo este embaralhamento e ouvindo a chuva a cair ele ainda precisou de um pentelhésimo de instante pra perceber que os barulhos da água caindo não eram apenas da chuva a cair, era também a chuva sim mas era também ela agora a tomar um banho, certamente a água a escorrer por todo o seu corpo escorrendo da mesma maneira que seu dedo o fez quase agora mesmo e que a fez sorrir e a ele também que agora há de querer ficar um montão de instantes a ouvir o barulho, os barulhos, da água a cair e a maravilhar-se com as luzes que agora vê, todas embaralhadas.
            Mas não ficou este montão de instantes pois após uma parcela dele resolveu resolver tocar o saxofone que estava logo ali ao lado dele a esperar quietamente a sua vez de entrar em cena e resolveu tocá-lo naquele mesmo instante em que pensava que estava a fim de fazer algo que não precise pensar amanhã, algo que se acabe totalmente em quinze minutos ou em meia hora como as notas do saxofone que agora toca, nada mais que estas notas que ocupam todo o espaço aqui do apartamento e lentamente, sim certamente hão de avançar e atravessar as portas que os separam e apesar do barulho de água a cair, irão e ocuparão seus ouvidos e os forçarão a sorrir pois não serão os seus lábios a sorrirem, serão os seus ouvidos a sorrirem de fato e tão logo as notas acabem, as letras e as palavras se acabem, acaba-se o momento por completo, nenhum registro é preciso, basta vivê-lo como o conto do Borges que não existiu em nenhum papel e o quadro que Rembrandt escondeu entre os fios de seus pincéis ou o solo que Johnny Carter esconde nas entranhas de seu sax e que é porventura diferente do que ele tocava agora com aquela necessidade de fazer algo sem necessidade alguma de lembrança nem de registro e que não existisse mais após cinco minutos, como é bem este conto...
            Tocava uma longa nota agora e sorriu quando veio à mente a palavra sexofone. Amanhã escrevo algo inspirado nela, pensou. E ainda tocava aquela longa nota que só tocava para ele e só tocava para ela que agora há de sorrir quando começou a achar que o barulho da água a cair neste momento deveria de ser só o da chuva e sorriu e pensou e a imaginou agora a enxugar-se e ainda a tocava quando sentiu uma mão tocando-o, acariciando-o pelas costas, arrepiando-o todo mais que em outros momentos e sentiu um beijo morno na nuca e um abraço em que os seios dela agora se juntavam a seu corpo e sentiu um abraço que há tanto tempo não sentia e sentiu-a tão perto dele, tão grudada a ele que teve a certeza que agora o barulho da água a cair era apenas o da chuva e tão-somente o da chuva e sentiu uma paz com aquilo tudo e tentou sorrir, sorriu do jeito que pôde, com o sax a ocupar a sua boca, com a chuva a ocupar os seus ouvidos, as luzes embaralhadas, os seus olhos fechados e ela a ocupar as suas narinas e todo o seu corpo, sorriu do jeito que pôde.
            Eta chuva boa de boa.


Sexta e definitiva


            E agora sim a chuva começa a dar sinais visíveis e definitivos de que vai parar, com aquela indecisa decisão de quem já cumpriu o seu papel e já não tem mais força pra mais nada e aquele sentimento de que nada mais vai acontecer a não ser aquele pingo preguiçoso que ainda há de cair lentamente se esbarrando nas folhas das árvores, escorregando-se nelas e demorando a alcançar o chão, e que agora sim finalmente se junta às poças na calçada que haverão de secar lentamente com o passar das pessoas e do tempo. Com o passar do tempo e das pessoas que certamente hão de esquecer que afinal um dia choveu. 

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