Quinta
– Sexofone
Da
janela de seu apartamento, décimo-segundo andar, ele costumava ver a cidade
iluminada, e como gostava dela nestes momentos em que milhões de luzes de
confundem, se completam; e naquele dia, de sua janela, via-se também a chuva, a
chuva sobre a cidade que tanto gostava a embaralhar as milhões de luzes que lá
luziam; e, distraído, vendo todo este embaralhamento e ouvindo a chuva a cair
ele ainda precisou de um pentelhésimo de instante pra perceber que os barulhos
da água caindo não eram apenas da chuva a cair, era também a chuva sim mas era
também ela agora a tomar um banho, certamente a água a escorrer por todo o seu
corpo escorrendo da mesma maneira que seu dedo o fez quase agora mesmo e que a
fez sorrir e a ele também que agora há de querer ficar um montão de instantes a
ouvir o barulho, os barulhos, da água a cair e a maravilhar-se com as luzes que
agora vê, todas embaralhadas.
Mas não
ficou este montão de instantes pois após uma
parcela dele resolveu resolver tocar o saxofone que estava logo ali ao lado
dele a esperar quietamente a sua vez de entrar em cena e resolveu tocá-lo
naquele mesmo instante em que pensava que estava a fim de fazer algo que não
precise pensar amanhã, algo que se acabe totalmente em quinze minutos ou em
meia hora como as notas do saxofone que agora toca, nada mais que estas notas
que ocupam todo o espaço aqui do apartamento e lentamente, sim certamente hão
de avançar e atravessar as portas que os separam e apesar do barulho de água a
cair, irão e ocuparão seus ouvidos e os forçarão a sorrir pois não serão os
seus lábios a sorrirem, serão os seus ouvidos a sorrirem de fato e tão logo as
notas acabem, as letras e as palavras se acabem, acaba-se o momento por
completo, nenhum registro é preciso, basta vivê-lo como o conto do Borges que
não existiu em nenhum papel e o quadro que Rembrandt escondeu entre os fios de
seus pincéis ou o solo que Johnny Carter esconde nas entranhas de seu sax e que
é porventura diferente do que ele tocava agora com aquela necessidade de fazer
algo sem necessidade alguma de lembrança nem de registro e que não existisse
mais após cinco minutos, como é bem este conto...
Tocava
uma longa nota agora e sorriu quando veio à mente a palavra sexofone. Amanhã escrevo
algo inspirado nela, pensou. E ainda tocava aquela longa nota que só tocava
para ele e só tocava para ela que agora há de sorrir quando começou a achar que
o barulho da água a cair neste momento deveria de ser só o da chuva e sorriu e
pensou e a imaginou agora a enxugar-se e ainda a tocava quando sentiu uma mão
tocando-o, acariciando-o pelas costas, arrepiando-o todo mais que em outros
momentos e sentiu um beijo morno na nuca e um abraço em que os seios dela agora
se juntavam a seu corpo e sentiu um abraço que há tanto tempo não sentia e
sentiu-a tão perto dele, tão grudada a ele que teve a certeza que agora o
barulho da água a cair era apenas o da chuva e tão-somente o da chuva e sentiu
uma paz com aquilo tudo e tentou sorrir, sorriu do jeito que pôde, com o sax a
ocupar a sua boca, com a chuva a ocupar os seus ouvidos, as luzes embaralhadas,
os seus olhos fechados e ela a ocupar as suas narinas e todo o seu corpo,
sorriu do jeito que pôde.
Eta
chuva boa de boa.
Sexta
e definitiva
E agora
sim a chuva começa a dar sinais visíveis e definitivos de que vai parar, com
aquela indecisa decisão de quem já cumpriu o seu papel e já não tem mais força
pra mais nada e aquele sentimento de que nada mais vai acontecer a não ser
aquele pingo preguiçoso que ainda há de cair lentamente se esbarrando nas
folhas das árvores, escorregando-se nelas e demorando a alcançar o chão, e que
agora sim finalmente se junta às poças na calçada que haverão de secar
lentamente com o passar das pessoas e do tempo. Com o passar do tempo e das
pessoas que certamente hão de esquecer que afinal um dia choveu.
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