quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Se for c, cafuné.

            Os meus avós paternos, que me criaram afinal, morreram os dois com poucos meses de diferença entre eles. Muito queridos, seus velórios e enterros agruparam uma porção de gente, lembranças, carinhos.
            Morreram próximos, pois assim viveram, e me deixaram órfão. Não que eu já não fosse muito crescidinho (e folgado) por aqueles dias e que já não soubesse me virar sozinho.
Sabia, sim, tocar a vida do jeito que desse, mas, reconheço, eles foram sempre minhas referências, sempre o meu porto seguro.
            Pelas minhas contas, o que herdei deles, além desse enorme apartamento onde sempre morei, daria pra viver sem trabalhar até os meus sessenta e sete anos, quatro meses e, arredondando, nove dias. Isso se continuasse em minha vidinha extravagante mas sem luxos extremos. Depois disso, teria que ver como pagar minhas contas mas isso estava longe demais pra sequer tirar o meu sono daqueles dias de recém adulto.
            Após enterrar o meu avô, pareceu-me que algo me impedia de voltar para o apartamento agora deserto. Fui ficando no cemitério, despedindo-me longamente de um a um de seus amigos, ouvindo recomendações e assegurando a todos que estava bem e que não precisaria de nenhuma ajuda mais profunda que um simples telefonema de vez em quando.
E mesmo quando já não restava mais viva alma naquele cemitério ainda assim fiquei, sentei-me a contemplar o imenso gramado arborizado que era aquele lugar, a usufruir da calma dos mortos. Tentei lembrar-me de meu pai, que morreu quando eu tinha poucos anos de vida, e de minha mãe que preferiu sumir de nossas vidas pouco tempo depois, sua carreira acadêmica decolou depois disso, quer eu queira admitir isso ou não. Mas o fato é que eu nunca pensava neles, não me fizeram falta naqueles anos todos de agradável convívio com os meus avós e, naquele momento, convenci-me racionalmente disso, que emocionalmente as feridas já tinham se cicatrizado há muito tempo.
E só quando, horas depois, o sol começou a dar os seus sinais de cansaço, e eu também, é que me decidi a voltar ao apartamento.
Voltar ao apartamento vazio que sempre foi minha casa.
            Abro a porta e vejo-o desoladamente silencioso, como poderia estar de outra forma? penso comigo mesmo, mas o fato é que nunca pensei que sentiria tanto esse vazio, tanto esse silêncio, que o estranharia tanto assim, justo o silêncio que tanto gosto pra ler aquela coleção incrível de livros que os meus avós tinham. O silêncio que virou rotina entre nós depois da janta, na grande sala, sim nós três cada um com o seu livro escolhido na mão, cada um com seu sonho, era imperioso que cada um escolhesse o seu livro ou sonho, sem interferências. Uma hora de boa leitura depois da janta, e o silêncio dos leitores a velar nossas noites.
            No dia em que voltei do cemitério, do silêncio das almas, aquele silêncio me incomodou, o silêncio desacompanhado me atropelou, esse que é muito distinto do silêncio da hora da leitura. Olho ao redor e só sinto o silêncio dos livros, que é muito diferente do silêncio dos leitores. Esses sim, valem o que valem, nem todos os silêncios se equivalem.
            Não consegui ficar muito tempo por lá.
            Saí.
            Saí e só voltei quando encontrei um gato, ainda bebê, pra trazer comigo. Pra me acompanhar no silêncio da leitura, em meu colo.
            De tanto fazer cafuné nele, ele aprendeu a pedir. Por vezes, estou lendo quando ele se aproxima de mim e me roça o rosto com a pata e me mostra sua cabeça à espera de um cafuné, que seguramente virá, ele o terá e o terá não só por merecimento.
            De tanto receber cafuné, ele até já aprendeu a dar também, basta eu pedir.
            Mesmo depois de tanto tempo desde a morte de meus avós, os paternos, ainda sinto o desconforto do silêncio, de seus silêncios, depois do jantar. Nessas horas, porém, viro-me pro meu gato e peço.
            “Me dá um cafuné?”
            Ele me olha e parece entender, tanto é que recebo sim o meu reconfortante cafuné diário.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Se for b, um beijo.

            “Me dá um beijo?” pedi.
            “Beijo, não... você não sabe que putas não beijam?”
            “Mas você disse que faria tudo...” arrisquei o velho truque.
            “Tudo menos isso...” ela sorriu o riso de quem não se deixa enganar tão facilmente.
            Ela agora estava lá, ao meu lado, já tínhamos transado, de forma especial, especialmente que dispensamos, como bem convém, as trocas de confidências tão comuns entre amantes. Só trocamos frivobanalidades, fluídos e gemidos. Já tudo e tudo o mais e logo ela se levantaria, inevitável, começaria a se vestir e isso seria o sinal, esse mais inevitável ainda, que me levaria à carteira, dinheiro vivo, sempre dinheiro vivo que essa é a regra comigo. Já basta pagar, basta isso, pagar com cartão seria por demais deprimente, esperar o sinal da internet, a senha que não entra, o olhar desviado para se manter as aparências, o sorriso amarelo, a autorização do banco. Constrangedor... muito...
            Logo ela se levantaria e a vida seguiria, parecia inevitável, mas ela não o fez tão rápido quanto era usual. Ofereci então uma nova taça de vinho, eu precisava e que mal há em oferecer uma a ela? Ela aceitou, e depois repetimos outra e outra mais, vinho Tannat que é o apropriado para essas horas.
            O silêncio prevalecia nesse nosso jogo, mas parecia a nós dois que gostaríamos muito de desembestar a falar, fingir intimidade, trocar confidências, ou foi só uma impressão minha? Teria sido bom se isso estivesse incluído no preço. Quanto teria de acréscimo agora uma conversa sincera, descontraída, descompromissada mas amorosa? Ou será que isso já estava incluído no “eu faço tudo o que você quiser” que ela respondeu ao telefone quando liguei? Ela não se lembrou do abraço recebido dias atrás, apenas do endereço, disse que já tinha vindo outras vezes ao prédio e eu me resignei ao meu papel de cliente impessoal e novato.
            Mas tudo não incluía uma conversa, ao menos não para um cliente de primeira vez. Talvez com o cartão fidelidade, algo depois mudasse. Tantas milhas, um sorriso sincero, mais tantas outras, ouvir uma confidência e assim iria.
            Tanto faz, toca-se a vida do jeito que der.
            Há mais de dez anos que eu só procuro sexo pago. Desde que aquela ex me humilhou publicamente, só se for pago; desde que ela me esnobou na frente de suas amigas, só a dinheiro vivo; desde que as mentiras se espalharam por sua boca pelos corredores do trabalho, só nota sobre nota. Nunca barganho, nunca discuto preços, nunca peço descontos, que isso inevitavelmente trará cobranças indevidas. É tanto? Tanto é! Aqui está, tanto!
            O vinho, aquela noite, me fez abraçá-la na cama no pós-coito, ela ronronou e se ajeitou sensualmente em meus braços.
            “Me dá um beijo?”
            “Beijo, não...”
            Tampouco conversa.
E ela não se levantava, cabeça sobre o meu peito.
Lembrei-me, vinho fazendo seus efeitos, de uma exceção, cinco anos atrás? Orra, tudo isso já? Talvez menos... não, já cinco anos... não importa. Saímos uma amiga e eu e a noite nos trouxe tudo o que um par saudável e descompromissado da vida poderia querer. Quando eu acordei, dia seguinte, ela já tinha ido embora, um bom sinal esse! Deixara um bilhete dizendo que “foi muito bom, adorei, a gente se vê!” Quer melhor sinal que esse?
Mas aí ela realmente me ligou... discutimos, perdi a amizade e voltei à rotina de pagar pelo sexo.
Acordei e ela ainda estava lá. Pediu-me desculpas, desconcertada, disse que fora inapropriado dormir lá, que não podia fazer isso... Não tinha sido, disse a ela que fingiu acreditar. Não quis tomar café comigo, estava sim constrangida.
Paguei e ela sorriu como se pedisse desculpas de novo, resmungou quase de forma inaudível que precisava do dinheiro e eu a deixei confortável, era o que tínhamos combinado. É tanto, tanto é! Sorri.
Sorri e a acompanhei até o elevador, que ela já conhecia, e disse-lhe que voltaria a ligar qualquer dia. Sorriu, pareceu lembrar-se de algo. Voltou-se, me deu um abraço como o do outro dia.
E beijou-me, beijou-me na bochecha. Como uma irmã...

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Se for a, um abraço.


             Meu pai era juiz e minha mãe uma importante pesquisadora de uma importante faculdade. Sem dúvidas do porquê que eu saí de casa tão cedo, cansei de conviver com semideuses...
            Talvez a frase acima seja um tanto quanto exagerada. Meu pai morreu quando eu nem tinha três anos e minha mãe, essa sempre foi muito ausente mesmo. Tanto que, pouco menos de um ano após a morte de meu pai, ela foi refazer sua vida em outro estado, deixando-me com meus avós paternos. Por um tempo ela ainda me ligou semana sim semana não para dizer que me amava (cada vez menos convincentemente) e que viria me buscar tão logo as coisas se ajeitassem (isso ela insistiu até eu ficar por demais descrente).
            Aparentemente, essas tais coisas que minha mãe falava ao telefone nunca se ajeitaram, pois nem três anos se passaram antes que o contato entre nós se perdesse por completo, nunca mais tive notícias dela, o que na realidade não me trouxe trauma algum, confesso aqui entre nós. Depois soube que seu novo marido não me suportava. Não que isso fosse uma novidade em minha vida, apenas menciono para constar.
Hoje sei que o que melhor herdei dela foi a sua ausência. De meu pai, nem aquela impressionante coleção de livros herdei, que sua parte principal serviu para pagar o luxuoso enterro do semideus, mausoléu com citações gregas incluído. Sobraram livros que os parentes próximos davam pouca importância mas que a mim valeram muitas horas bem vividas, extensas noites viajando por mundos outros.
            Depois que meus avós morreram, eu já era grandinho à época, decidi que não valia mais a pena ter família por perto. Sinto falta dos dois, é claro, sempre me foram leais e carinhosos. Meu avô morreu de saudades dois meses depois que minha avó e o que era família para mim foi enterrado junto com eles.
            Escolhas.
Escolhas, a gente faz o tempo todo, o importante é não se arrepender delas, custe o que custar. No máximo, arrepender-se e esconder isso de todos à volta, que a dor que se sente, essa é pessoal, sempre foi.
            Em todo o caso, nunca saí realmente do apartamento que foi de meus pais e depois de meus avós, os paternos, e que, agora, é grande demais para a minha solidão. Continuo por aqui, posso até dizer que já me adaptei, depois de quase quarenta anos zanzando por seus cômodos...
            Juntando tudo, o primeiro parágrafo lá em cima é uma completa asneira. Mas que me fez um bem escrevê-lo, isso fez.
            E a vida, toca-se do jeito que der.
            Ainda sorria sozinho no elevador quando ela entrou. Eu vinha das profundezas do estacionamento desse velho prédio e ela entrou no andar térreo. Apertou o andar acima ao meu e baixou a cabeça pensativa. Nunca a tinha visto por lá, e olha que sou morador antigo como já deve ter ficado claro.
            E aí? Aí que uma providencial falta de energia nos forçou a ficarmos meia hora presos naquele elevador e, da inevitável conversa inicial nessas horas, seguiu-se uma troca de olhares. Ela tinha bebido um pouco, eu também mas menos que ela. Sua boca então me contou que iria visitar um amigo no andar acima ao meu, mas foi seu olhar triste que me confidenciou o que realmente se tratava. Mesmo assim, fingi acreditar no que ela dizia, o tal amigo do andar de cima era um senhor intragável que aborrecia a todos os outros vizinhos com suas manias. Impossível que tivesse uma amiga como ela, com tal sorriso, com tal gentileza, pensei, mas não disse.
            O tempo passa, a luz volta quando já estávamos pertos demais, quando uma aparente intimidade já se criava na confusão de nossas mentes embriagadas e esperançosas. A luz volta e voltamos às nossas vidas, o elevador sobe e quando chega ao meu andar, um tchau, nos vemos, com certeza nos vemos por aí e por fim ela pede:
            “Me dá um abraço?”
            Como resistir? Dei, apertado abraço, senti seu calor e sua tristeza e sua mão deixando um cartão na minha, um nome e um telefone, apenas isso, como se isso fosse pouco.

            Demorei a dormir aquela noite, olhando o teto de meu apartamento, imaginando cenas, procurando por gemidos, sonhando possibilidades, almejando satisfações...

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Os pigarreios colossais de meus doutos ancestrais!

É esse o nome do livro que o Thio Therezo escreveu sobre os pigarreios, “Os pigarreios colossais de meus doutos ancestrais”. A partir de uma estória sobre os seus ancestrais e suas manias quanto aos pigarreios o Thio desenvolveu toda a sua teoria sobre essa figura de linguagem, estudo que o tornou famoso frente aos mais exigentes círculos intelectuais. Publicado inicialmente por uma pequena e desconhecida editora local, esse estudo ganhou o mundo a partir de uma brilhante tradução ao esloveno e, hoje, pode-se contabilizar traduções em mais de 150 línguas (entre vivas, mortas ou moribundas).
Não que eu o tenha lido, mas impressionava-me muito ver aquela prateleira cheia das mais estranhas edições desse estudo, eu era criança quando as vi pela primeira vez e isso impressiona facilmente, há de convir.
O Thio insiste que a palavra pigarreio, como substantivo, nunca fora contabilizada antes de seu estudo. Há, sim, o verbo pigarrear (ou mesmo pigarrar), há sim o resultante sonoro do ato de pigarrear, que é o pigarro, há até o seu subproduto físico, que é o catarro, há sim a expressão “eu pigarreio”, mas não havia, até ele conceituar isso com precisão, o simples pigarreio.
De qualquer forma, tive contato com palavra e conceito quando decidi escrever um conto que depois virou um romance com esse nome. Confesso que só fui ao dicionário após uma primeira versão do texto estar completa e só me convenci depois dele pronto que o que queria dizer em meu romance já estava literariamente conceituado, no estudo do Thio, como pigarreios.
O Thio, ao saber o nome do meu primeiro romance, deu-me uma aula sobre essa figura narrativa. Um pigarreio é uma pausa narrativa, mas com características próprias que, por vezes, são conflitantes. Há uma pequena sutileza aqui, o Thio tentava me explicar. Um pigarro é algo sonoro fruto de uma secura na garganta, um incômodo que impede a continuidade de uma narrativa. Já um pigarreio, que pode ou não ser acompanhado de um pigarro (ou mesmo de um catarro, que é expressão física de um pigarro), é nada mais que uma pausa narrativa onde o narrador se permite um tempo para análise de como continuar o que deve ser narrado, um tempo para a necessária reflexão.
Sem entrar em considerações, de qualquer índole, a respeito da supremacia do narrador sobre o fato a ser narrado, o Thio, assumindo isso como verdade universal, analisa em seu estudo, até do ponto de vista histórico, como esse processo se dá e aparece, mesmo em situações corriqueiras, como é bem uma simples conversa de botequim.
Um pigarreio pode servir como mudança de rumo da narrativa após o narrador se convencer dos perigos que o rumo inicial poderia proporcionar dados os ouvintes presentes. Pode servir apenas para despistar, recuar, recusar, retroagir narrativas, pode servir para enfatizar a grandeza do narrador ou debochar dos narrados, ou mesmo dos ouvintes, pode servir para ironizar situações, esconder fatos, revelá-los parcial ou totalmente. O narrador é soberano, esse é o ponto de partida. Não que esse tenha perfeito controle sobre a estória a ser contada e muito menos como ela será ouvida e entendida pelos outros, aí já são sutilezas que serão impossíveis de serem analisadas por aqui.
Nesses aspectos, o pigarreio, para o narrador de uma estória, é um ato de poder, de domínio. É o que resta ao narrador nesse mundo em que todos são donos da verdade. Seu último baluarte, assim mesmo Thio Therezo enfatizou.
Por fim, em seu estudo, o Thio classificou 83 tipos de pigarreios primários além de outros 127 secundários, alguns deles de tais sutilezas que só um verdadeiro literato há de conseguir distinguir. Como o Thio costuma dizer: “só quem leu muitas linhas há de conseguir ler as entrelinhas...”
Contou-me também a origem dessa figura narrativa, que remonta aos tempos de narrativas verbais, aos tempos em que a escrita ainda não estava totalmente sedimentada como forma de expressão. Daí, o Thio conjectura, a implicância dos filólogos em incluir a palavra nos dicionários. Se é uma figura de linguagem verbal, que lá permaneça, o Thio menciona já ter ouvido tal argumento.
O Thio, então, pediu-me para ler os meus Pigarreios. Confesso que não gosto de emprestar meus escritos inacabados para outros lerem, mas um pedido do Thio... não consigo recusar.
Sei que ele o leu de uma sentada, naquela mesma noite, nem é tão grande assim o texto, mas demorou dias para vir conversar comigo a respeito. Dias que sofri por não saber o que ele achou do texto, daquele meu primeiro romance. Ao final, ele retornou-me o manuscrito, piscou seu olho, excelente sinal, e apenas disse, para o meu exultante contentamento:
“É, garoto! O título está muito apropriado... você pegou bem o espírito da coisa...”





Lançamento de Livro. O meu novo livro, "Pigarreios", será lançado em Portugal no dia 11 de janeiro, na Chiado Café Literário, Av. da Liberdade, 180 D, em Lisboa. Em março, lançamento em São Paulo. Todos estão convidados!!!