Os meus avós paternos, que
me criaram afinal, morreram os dois com poucos meses de diferença entre eles.
Muito queridos, seus velórios e enterros agruparam uma porção de gente, lembranças,
carinhos.
Morreram próximos, pois assim viveram, e me deixaram
órfão. Não que eu já não fosse muito crescidinho (e folgado) por aqueles dias e
que já não soubesse me virar sozinho.
Sabia, sim, tocar a vida
do jeito que desse, mas, reconheço, eles foram sempre minhas referências,
sempre o meu porto seguro.
Pelas minhas contas, o que herdei deles, além desse
enorme apartamento onde sempre morei, daria pra viver sem trabalhar até os meus
sessenta e sete anos, quatro meses e, arredondando, nove dias. Isso se
continuasse em minha vidinha extravagante mas sem luxos extremos. Depois disso,
teria que ver como pagar minhas contas mas isso estava longe demais pra sequer
tirar o meu sono daqueles dias de recém adulto.
Após enterrar o meu avô, pareceu-me que algo me impedia
de voltar para o apartamento agora deserto. Fui ficando no cemitério,
despedindo-me longamente de um a um de seus amigos, ouvindo
recomendações e assegurando a todos que estava bem e que não precisaria de
nenhuma ajuda mais profunda que um simples telefonema de vez em quando.
E mesmo quando já não restava
mais viva alma naquele cemitério ainda assim fiquei, sentei-me a contemplar o imenso
gramado arborizado que era aquele lugar, a usufruir da calma dos mortos. Tentei
lembrar-me de meu pai, que morreu quando eu tinha poucos anos de vida, e de
minha mãe que preferiu sumir de nossas vidas pouco tempo depois, sua carreira acadêmica
decolou depois disso, quer eu queira admitir isso ou não. Mas o fato é que eu
nunca pensava neles, não me fizeram falta naqueles anos todos de agradável convívio
com os meus avós e, naquele momento, convenci-me racionalmente disso, que
emocionalmente as feridas já tinham se cicatrizado há muito tempo.
E só quando, horas depois,
o sol começou a dar os seus sinais de cansaço, e eu também, é que me decidi a
voltar ao apartamento.
Voltar ao apartamento
vazio que sempre foi minha casa.
Abro a porta e vejo-o desoladamente silencioso, como
poderia estar de outra forma? penso comigo mesmo, mas o fato é que nunca pensei
que sentiria tanto esse vazio, tanto esse silêncio, que o estranharia tanto
assim, justo o silêncio que tanto gosto pra ler aquela coleção incrível de
livros que os meus avós tinham. O silêncio que virou rotina entre nós depois da
janta, na grande sala, sim nós três cada um com o seu livro escolhido na mão,
cada um com seu sonho, era imperioso que cada um escolhesse o seu livro ou
sonho, sem interferências. Uma hora de boa leitura depois da janta, e o
silêncio dos leitores a velar nossas noites.
No dia em que voltei do cemitério, do silêncio das almas,
aquele silêncio me incomodou, o silêncio desacompanhado me atropelou, esse que
é muito distinto do silêncio da hora da leitura. Olho ao redor e só sinto o
silêncio dos livros, que é muito diferente do silêncio dos leitores. Esses sim,
valem o que valem, nem todos os silêncios se equivalem.
Não consegui ficar muito tempo por lá.
Saí.
Saí e só voltei quando encontrei um gato, ainda bebê, pra
trazer comigo. Pra me acompanhar no silêncio da leitura, em meu colo.
De tanto fazer cafuné nele, ele aprendeu a pedir. Por
vezes, estou lendo quando ele se aproxima de mim e me roça o rosto com a pata e
me mostra sua cabeça à espera de um cafuné, que seguramente virá, ele o terá e o terá não só por merecimento.
De tanto receber cafuné, ele até já aprendeu a dar
também, basta eu pedir.
Mesmo depois de tanto tempo desde a morte de meus avós, os
paternos, ainda sinto o desconforto do silêncio, de seus silêncios, depois do
jantar. Nessas horas, porém, viro-me pro meu gato e peço.
“Me dá um cafuné?”
Ele me olha e parece entender, tanto é que recebo sim o meu
reconfortante cafuné diário.
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