quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Se for d, aquele dedo.

Há dias e há dias, sabemos todos. Há aqueles em que, repentinamente, me invadem a mente os semideuses que foram meus pais e, mesmo sabendo que pouco convivi com eles efetivamente, esses dias me trazem lembranças e pensamentos, mais esses últimos que as primeiras que prefiro esquecê-las todas.
Mas os dois, feitos saqueadores, invadem minha mente ferozmente e terei que conviver com isso, e com as sabidas consequências, pelo dia todo.
Tocar a vida e seguir no passo que der, só me resta isso nesses dias. Mas, se nesses dias, ainda o vizinho resolve aprimorar o que treina todos os dias, sua rabugice, quando resolve ser aquilo que o diferencia de qualquer pessoa decente, então, nesses dias, o caldo entorna, e como entorna!
Sou tranquilo, ou penso ser, parece que muitas reclamações sobre mim não as há, mas vai saber, né? Em todo o caso, até minha tranquilidade se perde nesses dias em que acordo pensando nos semideuses e o vizinho resolve me aporrinhar em meus instantes de reflexão com sua irritante existência. O que ele faz de errado? Respira, só isso. Respira e existe, só isso. Respira e existe e cruza comigo no elevador, só isso.
Semideuses e o vizinho em uma união cósmica para atrapalhar o meu dia.
Só isso? É pouco para você? Pois, nessas horas, além de ter que fingir educação, difícil nesses dias em que acordo pensando nos semideuses que foram os meus pais, eu ainda terei que tolerar a sua má educação, nem um sorriso terei de volta ao meu forçado “bom dia”, nem uma palavra, nada.
Eu disse nada? E não é que nesse dia ele resolve me aporrinhar com o seu cotidiano mau humor? (se não ficou claro, o meu mau humor, ao contrário do dele, é só de tempos em tempos, nada que possa prejudicar alma que seja, me deixando em paz, quero dizer... e tem sido cada vez mais raro, só que hoje...).
Pois bem, o vizinho do andar de cima resolve então me interpelar, justamente no elevador, e eu ainda tentando sobreviver às minhas malditas lembranças, ele me interpela, nesse lento e velho e ineficiente elevador, por conta do barulho que meu gato faz, supostamente faz, e que, na visão dele (ou audição, para melhor dizer nesse caso), o impede de assistir ao seu programa de TV predileto.
Qual? Sei lá, sei lá...
Respiro fundo antes de responder a ele. Talvez fundo demais, pois apenas pedi desculpas pelo barulho (mas qual? meu gato só faz ronronar e receber e distribuir cafunés às pessoas merecedoras disso).
“... não voltará a acontecer...” eu completo minhas desculpas ao sair do elevador e sigo o meu caminho que, por sorte, é na direção oposta à dele.
Mas há dias e há dias. Há dias em que nada começa bem e você só quer que lhe deixem em paz. Há dias em que você se esforça e, respirando fundo, até engole alguns sapos por conta de um gato. Mas há dias em que isso fica lhe aporrinhando a mente e você não se convence de forma alguma que essa deglutição fez bem para o seu fígado, ele ainda continua comandando seus pensamentos apesar de sua mente tentar resistir.
Você almoça, e nada da comida lhe deixar em paz. Você caminha, você entra numa livraria, você pensa em ligar para ela para agendar uma nova visita para hoje, muita coisa acontece mas nada resolve estancar essa produção excessiva de bile. E, percebe, agora não são mais os seus pais semideuses que o aborrecem, é sim o vizinho, sua voz esganiçada reclamando de supostos, mas inexistentes, ruídos felinos que, vai saber, supostamente atrapalham o ruído irritante de uma TV que não é a sua, é a dele...
Você volta pra casa, pensando naquele livro que irá certamente lhe acalmar. Mas, há dias e há dias... Tão logo você entra no prédio em que morou por toda a sua vida, lá está ele, o vizinho, esperando o elevador.
Corajoso que sou, assim me ensinaram os avôs que me criaram, segui em frente, dividi com o ignóbil o lento elevador, ainda ouvi mais uma vez sua rabugenta reclamação a respeito de um suposto barulho que meu pacato gato aparentemente faz...
Mas desta vez, nada respondi, pra espanto do vizinho do andar de cima. Saí do elevador calmamente e mostrei-lhe efusivamente o meu predileto dedo médio, com todo o vigor que há nesses dias.
Ele pediu, não? penso calmamente, o livro à espera para uma noite que agora e finalmente se promete tranquila...

2 comentários:

  1. Flávio, seu texto me lembrou o filme Um dia de fúria. Quem não os tem não é mesmo? Ninguém merece vizinho pentelho feito esse, rs
    Quer saber? Sua atitude com certeza melhorou sua crise da bile não foi? Abraço!

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    1. Roseli, é por aí mesmo... Todos temos nossos dias assim...

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