Thio Therezo escreveu por muito tempo na primeira pessoa os seus contos e romances, publicados, impublicados
e impublicáveis. Dizia ele que se sentia bem escrevendo na primeira pessoa,
questão de estilo, dizia, principalmente que podia se esbanjar e se esbaldar em
reflexões e quetais.
Não, nada de autoficção ou memórias.
Ficção, ficção, pura ficção, que era isso que ele gostava de escrever.
Mas na primeira pessoa.
Ficção... uma vez ele nos contou que o seu psicanalista insinuou que ele se escondia por trás dessa estória de só escrever
ficção só para poder escapar de sua própria história. O Thio até que gastou o
seu tempo refletindo sobre isso, nisso ele era coerente, qualquer crítica bem
fundamentada era motivo para ele refletir e, se fosse o caso, até mudar
atitudes. Refletiu e refletiu mas não conseguiu se convencer de que o
psicanalista estava no caminho certo. Foi quando o Thio resolveu se dar alta,
ficando apenas com a sua ficção.
Ficção, quase sempre na primeira
pessoa.
Não que o ato de se dar alta tivesse sido a solução de todos os seus
problemas com essa sua escolha literária. Longe disso, pois o perigo também residia no fato de que amigos, amigas e até parentes, próximos ou não, muitos deles se identificavam
vez ou outra com personagens dos escritos do Thio. Era claro isso, já que o Thio escrevia na primeira pessoa, obviamente era ele o
narrador de algo que acontecera justamente a ele e, claramente, aquele
personagem que também lá apareceu sou eu, só pode ser eu, o amigo que se ofende, a amiga que se vangloria, o parente
que se ressente. Até minha mãe, irmã dileta do Thio, por vezes o cobrava por
não ter antes dividido aquela estória (escrita na primeira pessoa) com ela, ela que nunca se convenceu dessa estória de ficção.
E aqueles que se identificavam em
seus textos se não reclamavam de injustiças ditas por vezes insistiam em sugerir modificações no texto, pois aquela estória não foi bem assim, eu vou te contar
o que realmente aconteceu naquele momento e você decide se quer ser fiel ou não
aos fatos...
Pior que isso eram os que nunca se
reconheciam em personagem algum e que, portanto, reclamavam da desatenção,
passavam meses sem falar com o Thio.
O Thio, já cansado, não escreve
mais, mas quando forem analisar a sua (extensa e profunda) obra verão que, a
partir de um certo momento, todos os personagens de suas estórias morrem antes
do final do texto (muitos, que são importantes na trama, morrem na última
linha, mas morrem). Não sobra um personagem vivo que seja...
Um dia perguntei ao Thio, em um
daqueles momentos em que estávamos os dois a jogarmos uma partida de xadrez, o
porquê daquilo, de todos os personagens morrerem ao final de seus escritos.
“Precaução”, ele me disse antes do
cavalo saltar para a casa a5.
Concentrei-me, que aquele cavalo lá
só iria confundir a minha estratégia (até trinta segundos atrás) vencedora de ataque.
Recuei meu bispo e perguntei:
“Precaução? Como assim?”
Como consequência, vi a dama do Thio
avançar impiedosamente sobre o meu território. Já um pouco relaxado por conta
desse ataque e vendo-me encurralado, contou-me que, a partir do momento em que
começara a matar todos os seus personagens, se alguém viesse questioná-lo sobre
se ele teria se inspirado nele, ou sugerisse modificações no texto, bastava
responder:
“Claro que não me inspirei em você
para aquele personagem!!!”
“Como não? Veja as semelhanças...”
Mas antes que o interlocutor tivesse alguma chance de prosseguir, o Thio
retrucava:
“Olha, você está vivo, não?” E,
mesmo que demorasse um pouco, a resposta vinha clara.
“Mas é claro que estou!!! Não estás
a ver?”
“Então... então, o que dizer...
aquele personagem não pode ser você... pois no texto ele morre e você está mais
do que vivo!”
Às vezes, isso bastava para
convencer o interlocutor. Mas, por vezes, ainda havia algo a mais:
“... não, não me venha com
enrolações, não tente me enganar... Era eu aquele personagem, sem tirar nem
por...”
“E como você me explica que o
personagem morreu e você está vivo aqui, conversando comigo...” o Thio
argumentava.
“... ora... foi ficção... você
inventou essa parte final!”
“É isso! Ficção, pura ficção...
ainda bem que você agora entendeu...”
E tratava de mudar de assunto ou se
distanciar se assim conseguisse...
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