quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Notório



            “Vê se pede aí coerência...”
            “Coerência... coerência... não, nada disso...”
            “E imparcialidade?”
            “Tampouco isso...”
            “Honestidade? Ética, talvez?”
            “Honestidade... não... ética... bulhufas, mas péra aí, diz que tem que ter reputação ilibada...”
            “Não, não... são coisas totalmente diferentes... nada a ver... Vejamos, ele já foi condenado à prisão perpétua?”
            “Que eu saiba, não...”
            “Então, qualquer um pode atestar essa tal de reputação ilibada dele... mesmo a palavra de um de seus clientes deve ser suficiente.”
            “Mas tem aqui uma idade mínima...”
            “Ele tem, ele tem, estamos todos carecas de saber disso...”
            ...
            “Que mais?”
            “Exige um tal de notório... notório saber, é isso!”
            “Que porra é essa? Em qual cartório eles atestam isso?”
            “Sei lá... Acho que ele deve mostrar um conhecimento notável, algo que se nota claramente, sem sombra de dúvidas, essa é a ideia.”
            “Ah... não deve ser difícil isso, o pessoal engole qualquer coisa...”
            “Eu tenho um primo que sabe muito sobre cerveja e sobre churrasco, todo mundo nota isso, ele tem um notório saber nesses assuntos.”
            “Mas pede notório saber em beber cerveja?”
            “Acho que não, era só um exemplo...”
“Ah! E você acha que ele tem notório saber?”
            “É bem sabido que ele escreveu alguns livros...
“Então...”
“O problema é que descobrirem um plágio em um de seus livros, mais do que um, aliás, em mais do que um, na realidade.”
            “Plágio... aí complica...”
“Melhor a gente pensar em outro nome...”
            “Mas péra aí! Talvez...”
            “O que?”
            “E se...”
            “Fala logo!”
            “Pensa no seguinte... alguém escreve um livro e copia partes de um livro que saiu lá longe, em outro continente, um ano antes...
“Mas ele não citou a fonte...”
“Esquece essa baboseira de que ele deveria ter citado a fonte, detalhes, isso é coisa desses perdedores, desses... precisamos pensar grande, afinal somos gestores... empreender, essa é a palavra...”
“Não entendi...”
“Veja bem, se ele tinha um conhecimento de um livro publicado lá longe pouco tempo atrás, isso não caracteriza claramente o fato de que ele tinha um conhecimento específico, um notório saber? E demonstrou isso, cara! Copiou ipsis litteris...”
“Ips... o que?”
“Esquece, é um provérbio grego, você não iria entender... mas voltando, ele tinha um notório saber demonstrado em um livro, não?”
“Sim, publicado e tudo...”
“Resolvido.”
“Mas parece que foram vários plágios.”
“Melhor ainda... repetitivo e consistente... isto é, notório...”
“Ótimo! Fechado?”
“Sim, tem todos os pré-requisitos... manda o convite!”


No próximo dia 8 de março, lançarei o meu novo livro (Pigarreios) em São Paulo. Será na Livraria Cultura do Shopping Villa-Lobos, a partir das 19 horas. Todos estão convidados!!!



quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Se for e, esperança.

        Por uma dessas contingências da vida, tenho dinheiro o suficiente para chegar à velhice sem precisar trabalhar realmente. Disse contingência da vida? Pois melhor seria ter dito contingência da morte, pois o dinheiro que tenho vem de uma herança.
        Pois eu retribuo essa facilidade recebida do destino comprando livros, principalmente de autores desconhecidos. É minha contribuição social, digamos assim. O fato é que o meu cotidiano se enche de visitas a livrarias e sebos, intercalados por agradáveis horas de leituras.
        Mas obviamente não só disso vive alguém, prazeroso que seja.
        Pois estava eu em um sebo aqui pertinho de casa quando ela entrou. Um olhar cruza o outro e logo nos reconhecemos.
        - Prima!
        - Primo!
        Os primos voltavam a se encontrar depois de imenso tempo. Muito a se falar, a lembrar, a colocar em dia os tantos e tantos anos que nos distanciaram, ela era a minha namoradinha da infância, essas coisas que os adultos inventam e as crianças aceitam sorridentes mas cheias de vergonha. E era assim mesmo, no diminutivo, que pequenos éramos naqueles tempos, antes das tais contingências da vida nos separarem por longos anos. E assim continuaríamos, não fosse um sebo nos reaproximar.
        É claro que, a princípio, todo reencontro é estranho mas, se houver tempo e boa vontade, essa fase se supera e chega-se à de lembranças boas e, por que não, à possibilidade de se criar novas que algum dia serão lembradas como boas e assim segue. 
        Assim segue a vida e assim sempre seguirá... a eterna busca por lembranças a serem consideradas boas em algum futuro ainda impreciso.
        Mas acontece que nos demos o tempo necessário para a estranheza desaparecer e sim, tivemos muita boa vontade. E começou uma fase em que nos víamos frequentemente, em que nos reaproximamos de fato e talvez pudéssemos até parecer um casal de namoradinhos de novo não fosse um detalhe. Se naquela primeira fase de namorico era bem natural, crianças que éramos, que não se trocasse um beijo que fosse, que não nos amássemos loucamente depois do vinho, tudo se torna um pouco estranho quando somos dois a nos aproximarmos dos trinta, ela um aninho mais velha, e estando os dois descompromissados e saudáveis, os dois com olhares carinhosos e carentes.
        Mas, a cada vez que eu me aproximava um pouco mais para um beijo, ela virava o rosto. Não me repreendia, mas recusava. Não fazia cena, parecia até que nada acontecia, mas só recusava gentilmente. Nada há a fazer com a recusa, aceita-se e segue-se a vida. E seguimos nos vendo, ela cada vez mais contando seus segredos amorosos, seus casos com parceiros eventuais, o que, confesso, muito me incomodava. Tão próxima para esses segredos, por que não para um beijo carinhoso, por que não para intimidades?
        Um dia, fui muito direto.
        - Será que posso ter esperança?
        Ela sorriu, aquele sorriso que me lembrava dos tempos em que, crianças, brincávamos no sítio de nossos avós, escondidos. E ela sorria das coisas que me falava e eu, mais criança que ela, muito mais do que aquele mero ano de diferença poderia indicar, e eu, mais ingênuo, sempre fui, e eu, mais inseguro, sempre o serei perto dela, e eu sorria de volta sem perceber a malícia toda que restava naquele seu sorriso de criança safada.
        Ela sorriu exatamente esse sorriso.
        - Será que posso ter esperança?
        Não me respondeu nada, só o sorriso e aquele olhar que o acompanhava, tão característico dela, distante e incômodo ao mesmo tempo.
        No dia seguinte, ela me trouxe essa tartaruga que agora nos faz companhia, a mim e ao gato que sabe cafunezar, essa tartaruga de passos irritantemente lentos e que batizamos, entre risos amarelos e sinais inequívocos de despedida, de esperança.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Ficções


            Thio Therezo escreveu por muito tempo na primeira pessoa os seus contos e romances, publicados, impublicados e impublicáveis. Dizia ele que se sentia bem escrevendo na primeira pessoa, questão de estilo, dizia, principalmente que podia se esbanjar e se esbaldar em reflexões e quetais.
            Não, nada de autoficção ou memórias. Ficção, ficção, pura ficção, que era isso que ele gostava de escrever.
            Mas na primeira pessoa.
            Ficção... uma vez ele nos contou que o seu psicanalista insinuou que ele se escondia por trás dessa estória de só escrever ficção só para poder escapar de sua própria história. O Thio até que gastou o seu tempo refletindo sobre isso, nisso ele era coerente, qualquer crítica bem fundamentada era motivo para ele refletir e, se fosse o caso, até mudar atitudes. Refletiu e refletiu mas não conseguiu se convencer de que o psicanalista estava no caminho certo. Foi quando o Thio resolveu se dar alta, ficando apenas com a sua ficção.
            Ficção, quase sempre na primeira pessoa.
            Não que o ato de se dar alta tivesse sido a solução de todos os seus problemas com essa sua escolha literária. Longe disso, pois o perigo também residia no fato de que amigos, amigas e até parentes, próximos ou não, muitos deles se identificavam vez ou outra com personagens dos escritos do Thio. Era claro isso, já que o Thio escrevia na primeira pessoa, obviamente era ele o narrador de algo que acontecera justamente a ele e, claramente, aquele personagem que também lá apareceu sou eu, só pode ser eu, o amigo que se ofende, a amiga que se vangloria, o parente que se ressente. Até minha mãe, irmã dileta do Thio, por vezes o cobrava por não ter antes dividido aquela estória (escrita na primeira pessoa) com ela, ela que nunca se convenceu dessa estória de ficção.
            E aqueles que se identificavam em seus textos se não reclamavam de injustiças ditas por vezes insistiam em sugerir modificações no texto, pois aquela estória não foi bem assim, eu vou te contar o que realmente aconteceu naquele momento e você decide se quer ser fiel ou não aos fatos...
            Pior que isso eram os que nunca se reconheciam em personagem algum e que, portanto, reclamavam da desatenção, passavam meses sem falar com o Thio.
            O Thio, já cansado, não escreve mais, mas quando forem analisar a sua (extensa e profunda) obra verão que, a partir de um certo momento, todos os personagens de suas estórias morrem antes do final do texto (muitos, que são importantes na trama, morrem na última linha, mas morrem). Não sobra um personagem vivo que seja...
            Um dia perguntei ao Thio, em um daqueles momentos em que estávamos os dois a jogarmos uma partida de xadrez, o porquê daquilo, de todos os personagens morrerem ao final de seus escritos.
            “Precaução”, ele me disse antes do cavalo saltar para a casa a5.
            Concentrei-me, que aquele cavalo lá só iria confundir a minha estratégia (até trinta segundos atrás) vencedora de ataque. Recuei meu bispo e perguntei:
            “Precaução? Como assim?”
            Como consequência, vi a dama do Thio avançar impiedosamente sobre o meu território. Já um pouco relaxado por conta desse ataque e vendo-me encurralado, contou-me que, a partir do momento em que começara a matar todos os seus personagens, se alguém viesse questioná-lo sobre se ele teria se inspirado nele, ou sugerisse modificações no texto, bastava responder:
            “Claro que não me inspirei em você para aquele personagem!!!”
            “Como não? Veja as semelhanças...” Mas antes que o interlocutor tivesse alguma chance de prosseguir, o Thio retrucava:
            “Olha, você está vivo, não?” E, mesmo que demorasse um pouco, a resposta vinha clara.
            “Mas é claro que estou!!! Não estás a ver?”
            “Então... então, o que dizer... aquele personagem não pode ser você... pois no texto ele morre e você está mais do que vivo!”
            Às vezes, isso bastava para convencer o interlocutor. Mas, por vezes, ainda havia algo a mais:
            “... não, não me venha com enrolações, não tente me enganar... Era eu aquele personagem, sem tirar nem por...”
            “E como você me explica que o personagem morreu e você está vivo aqui, conversando comigo...” o Thio argumentava.
            “... ora... foi ficção... você inventou essa parte final!”
            “É isso! Ficção, pura ficção... ainda bem que você agora entendeu...”
            E tratava de mudar de assunto ou se distanciar se assim conseguisse...


quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Se for d, aquele dedo.

Há dias e há dias, sabemos todos. Há aqueles em que, repentinamente, me invadem a mente os semideuses que foram meus pais e, mesmo sabendo que pouco convivi com eles efetivamente, esses dias me trazem lembranças e pensamentos, mais esses últimos que as primeiras que prefiro esquecê-las todas.
Mas os dois, feitos saqueadores, invadem minha mente ferozmente e terei que conviver com isso, e com as sabidas consequências, pelo dia todo.
Tocar a vida e seguir no passo que der, só me resta isso nesses dias. Mas, se nesses dias, ainda o vizinho resolve aprimorar o que treina todos os dias, sua rabugice, quando resolve ser aquilo que o diferencia de qualquer pessoa decente, então, nesses dias, o caldo entorna, e como entorna!
Sou tranquilo, ou penso ser, parece que muitas reclamações sobre mim não as há, mas vai saber, né? Em todo o caso, até minha tranquilidade se perde nesses dias em que acordo pensando nos semideuses e o vizinho resolve me aporrinhar em meus instantes de reflexão com sua irritante existência. O que ele faz de errado? Respira, só isso. Respira e existe, só isso. Respira e existe e cruza comigo no elevador, só isso.
Semideuses e o vizinho em uma união cósmica para atrapalhar o meu dia.
Só isso? É pouco para você? Pois, nessas horas, além de ter que fingir educação, difícil nesses dias em que acordo pensando nos semideuses que foram os meus pais, eu ainda terei que tolerar a sua má educação, nem um sorriso terei de volta ao meu forçado “bom dia”, nem uma palavra, nada.
Eu disse nada? E não é que nesse dia ele resolve me aporrinhar com o seu cotidiano mau humor? (se não ficou claro, o meu mau humor, ao contrário do dele, é só de tempos em tempos, nada que possa prejudicar alma que seja, me deixando em paz, quero dizer... e tem sido cada vez mais raro, só que hoje...).
Pois bem, o vizinho do andar de cima resolve então me interpelar, justamente no elevador, e eu ainda tentando sobreviver às minhas malditas lembranças, ele me interpela, nesse lento e velho e ineficiente elevador, por conta do barulho que meu gato faz, supostamente faz, e que, na visão dele (ou audição, para melhor dizer nesse caso), o impede de assistir ao seu programa de TV predileto.
Qual? Sei lá, sei lá...
Respiro fundo antes de responder a ele. Talvez fundo demais, pois apenas pedi desculpas pelo barulho (mas qual? meu gato só faz ronronar e receber e distribuir cafunés às pessoas merecedoras disso).
“... não voltará a acontecer...” eu completo minhas desculpas ao sair do elevador e sigo o meu caminho que, por sorte, é na direção oposta à dele.
Mas há dias e há dias. Há dias em que nada começa bem e você só quer que lhe deixem em paz. Há dias em que você se esforça e, respirando fundo, até engole alguns sapos por conta de um gato. Mas há dias em que isso fica lhe aporrinhando a mente e você não se convence de forma alguma que essa deglutição fez bem para o seu fígado, ele ainda continua comandando seus pensamentos apesar de sua mente tentar resistir.
Você almoça, e nada da comida lhe deixar em paz. Você caminha, você entra numa livraria, você pensa em ligar para ela para agendar uma nova visita para hoje, muita coisa acontece mas nada resolve estancar essa produção excessiva de bile. E, percebe, agora não são mais os seus pais semideuses que o aborrecem, é sim o vizinho, sua voz esganiçada reclamando de supostos, mas inexistentes, ruídos felinos que, vai saber, supostamente atrapalham o ruído irritante de uma TV que não é a sua, é a dele...
Você volta pra casa, pensando naquele livro que irá certamente lhe acalmar. Mas, há dias e há dias... Tão logo você entra no prédio em que morou por toda a sua vida, lá está ele, o vizinho, esperando o elevador.
Corajoso que sou, assim me ensinaram os avôs que me criaram, segui em frente, dividi com o ignóbil o lento elevador, ainda ouvi mais uma vez sua rabugenta reclamação a respeito de um suposto barulho que meu pacato gato aparentemente faz...
Mas desta vez, nada respondi, pra espanto do vizinho do andar de cima. Saí do elevador calmamente e mostrei-lhe efusivamente o meu predileto dedo médio, com todo o vigor que há nesses dias.
Ele pediu, não? penso calmamente, o livro à espera para uma noite que agora e finalmente se promete tranquila...