quinta-feira, 23 de março de 2017

Se for f, uma foto, nós dois.

            E agora eu fico olhando essa foto de nós dois, é o que sobrou de tudo, além da tartaruga que se chama esperança, é claro, dessa tartaruga que nos faz companhia, a mim e ao gato que sabe cafunezar.
            Ela e eu crescemos juntos. Bom, talvez isso seja um tanto quanto exagerado. A gente se via frequentemente. Tá... tá... isso também foge um pouco da realidade... Mas como explicar a nossa ligação no passado? E a que ficou, então?
            Sim, com certeza, nós passamos um par de verões juntos na fazenda de uma de nossas tias em comum. Dois verões, talvez, dos quais eu me recordo especialmente de um.
            Do que me lembro?
            De ser pequeno.
            De muita gente aparecer e desaparecer por lá naquele janeiro quente.
            Conhecidos ou não, muita gente.
            De estarmos, ela e eu, sempre juntos, disso me recordo.
            De, por conta disso, sermos chamados de namoradinhos.
            Da risadinha estranha da tia solteira quando primeiro nos chamou de namoradinhos, como se esquecer disso?
            Mas também me lembro de algo mais.
            Era pequeno, já disse.
            Me lembro dela me arrastar pra longe da casa principal.
            De irmos correndo por entre as árvores e sempre olhando para trás.
            Me lembro de entrarmos na casa de ferramentas, longe de todos.
            Me lembro dela tirando a roupa. Ela era pequena também, não me interpretem mal.
            Me lembro dela pedindo pra eu tirar a minha roupa também. Eu era pequeno, todo pequeno...
            Me lembro dela me pedir para deitar em cima dela, ela tinha aberto as pernas. Éramos pequenos e quem acha que houve algo a mais do que um arrepio inconsequente, algo mais do que um estranhamento, uma curiosidade satisfeita, está enganado. Foi só isso, e foi só um gemido dela, gemido um tanto quanto forçado, pelo que me lembro.
            Me lembro dela me contar depois que vira os tios fazendo isso, na noite anterior. Falou do gemido da tia, abafado por sua mão e que mais parecia um suplício.
            E foi tudo.
            Nunca mais falamos disso, tão estranho foi esse nosso teatrinho escondido. Nem sabíamos por que estávamos fazendo isso escondido. Era pequeno e não entendia, mas algo parecia errado, ou estranho, senti vergonha de meu corpo entre as pernas dela, seu abraço forçando nossos corpos a se unirem.
            Sabe mais o que eu vi? ela perguntou enquanto forçava minha cabeça por entre as suas pernas.
            Não quero, não... (se eu soubesse à época como isso era bom! mas eu era pequeno, cara, inocente, bobinho... Ah! e se eu soubesse que nunca mais teria outra chance com ela, sequer tocar sua pele macia de novo...).
            E o que sobrou nos dias seguintes foi um olhar estranho entre a gente, nada que alguém pudesse perceber, nisso ela sempre foi convincente. Mas é claro que eu não conseguia encarar os tios que tanto a inspiraram sem ter vontade de rir...
            Nunca mais falamos disso e quando a reencontrei em um sebo, muitos anos depois, já éramos crescidos e maduros o suficiente para relembrar e dar boas risadas de nossa inocência de então. Mas nada, nada dissemos então, nem uma palavra dela e tampouco minha.
            Alguns dias depois... ou foram muitos? Poucos ou muitos e acabou o verão, acabou nossa estadia por lá. Malas sendo feitas apressadas, correria para deixar tudo em ordem, a casa da fazenda ficaria fechada por algum tempo até voltarmos, até alguém voltar. Alguém, mas não eu, que naquele ano tudo mudaria em minha vida, meu pai morreria e minha mãe iria embora em busca da felicidade com um novo amigo. E eu não voltaria mais àquela fazenda.
Como sempre em nossa família, tudo acaba em uma sessão de fotos e não seria diferente naquele último dia de verão na fazenda.
            Queria uma foto... nós dois... pedi encabulado ao meu tio que se encarregava da máquina fotográfica. Encabulado e assustado, ou acho que estava assim se considerarmos o resultado da foto.
            Risadas, a tia ainda mencionou de novo a estória dos namoradinhos.
            E acabou o verão, acabou nossa estadia na fazenda, minha vida mudou, demorou muito a tornar a vê-la de novo, assim me lembro, assim deve ter acontecido.
            E agora fico eu aqui olhando essa foto. Meus olhos arregalados e assustados não deixam dúvidas. A risada dela, seu olhar confiante, mesmo pequena, sempre me intimidaram, sempre...
            A foto, a tartaruga que lentamente se afasta de mim, as lembranças, ela, seu olhar intimidador, melhor mesmo é eu abrir uma outra garrafa de vinho...

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