quinta-feira, 30 de março de 2017

Se for g, gentileza

Dentre os inúmeros aplicativos de celulares disponíveis a solitários como eu, no meio daqueles que nos permitem pedir pizzas individuais ou games mortais, há um chamado Xuber. Devido a uma não intencional semelhança de nomes com outro aplicativo, às vezes esse passa despercebido a muitos incautos por acreditarem que é uma de suas meras variações.
Mas não a mim, que o utilizo frequentemente.
Basta preencher online um simples formulário no aplicativo, enviar e esperar. Quer dizer... como se “esperar” pudesse ser qualificado tão ingenuamente junto à palavra basta! Sim, enviar e esperar é a pior parte pois, às vezes, a demora acaba interferindo negativamente no desejo que na hora sentimos, o desejo que se mostrou crescente à medida em que se preenchia os vários itens do formulário e a imaginação corria solta.
Mas a espera acaba inevitavelmente, sempre acaba. O carro chega e lá se vão vocês dois. Ou mais do que dois, se você optar por um prazer mais compartilhado. E vocês vão até o lugar previamente escolhido onde, ainda no carro, tudo acontece como se deve acontecer.
No começo, os administradores do Xuber, que, como só podíamos esperar, ficam com a parte do leão, eles não ofereciam lugares apropriados para essa tal estratégica e agradável parada e ladrões e policiais afastaram muitos clientes.
Agora não, grandes terrenos espalhados pela cidade foram comprados e são pra lá que os carros se dirigem após terem recolhidos seus clientes em casa. Decorações bem escolhidas e as sensações do proibido e de insegurança envolvem os clientes com total segurança. Fetiches e sensações, disso se trata.
A lista de opções é grande, e há os que prefiram motoristas com fantasias, e há os que se divertem fazendo bizarros pedidos, e há os que aproveitam pra pedir o jantar incluso...
Mas o charme, é claro, é a escolha do carro. Fetiche incluído, cara! Vez eu me surpreendi com uma jovem em uma Romiseta. Sexo vintage aquele, apertado e histórico. O bom é que ela era do tipo mignon.
A loira fatal no Impala Imperial 1957, o casal no fusca Brigitte Bardot, a mulher maravilha em sua Harley-Davidson, façam suas escolhas.
Daquela vez, meu pedido foi atendido rapidamente e logo o porteiro do prédio me avisou que um carro estava à minha espera. Desci ansioso para o encontro.
Ela tinha a idade de minha avó e trajava um jeito todo especial e carinhoso de comportamento, de vestes e de fala. Suas rugas sem remorsos não escondiam, porém, a bela e tranquila mulher que ela era e aparentemente sempre fora. Sorriso constante, respondia-me com frases onde delicadas e precisas mesóclises conviviam harmoniosamente com expressões e palavras que eu quase desconhecia. Enquanto esperávamos um sinal abrir, e eu torci para que aquele momento se alongasse tal o prazer sentia em ouvi-la, ela dissertou sobre as origens de um conhecido provérbio e suas traduções em quinze diferentes línguas, algumas já mortas e devidamente enterradas.
Chegamos, ela estacionou o carro com a tranquilidade dos deuses enquanto me contava suas impressões sobre um livro lido horas antes. Desligou o carro, sorriu, olhou-me, sua mão vivida tocou-me com carinho maternal.
Ao prazer verbal, seguiu-se o oral e, pela hora e tanto que permanecemos juntos naquele carro (qual carro? quem se importa...), passeamos livremente por todas as experiências sensoriais à nossa disposição.
Foi o melhor sexo que tive na vida!
Inebriado, fiquei sem palavras quando ela me deixou de volta no meu apartamento e até hoje eu me arrependo de não tê-la pedido em casamento naquele preciso instante, ou ao menos que me desse o seu número do celular...
Quanto prazer não teríamos naquela minha biblioteca herdada? fico a me perguntar, constantemente, em longas noites de pizzas individuais... Ouvi-la ler Pessoa enquanto sua nuca explora lentamente a minha língua, seu gemido ao final da frase derradeira do poema. O sofá onde embolaríamos nossas pernas e nossas ideias jogadas ao acaso... uma crescente admiração por ela que seguramente viria acompanhando tudo isso...
Mas perdi minha chance!
Como de hábito, depois de preencher as informações básicas no aplicativo do Xuber, vou até o final do formulário online e escolho o item “Surpreenda-me”. Abre-se aí uma nova janela com as opções: “com gentileza”, “sem gentileza” e “surpreenda-me totalmente”.
Escolho invariavelmente “com gentileza”. Surpreenda-me com gentileza, assim quero e não tenho me arrependido das surpresas e da diversidade que tenho recebido de volta.
E quanto ao complemento que sempre escolho, o que nos resta afinal nessa vida a não ser pedir que ao menos seja com gentileza?

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