quinta-feira, 4 de maio de 2017

Nas entreletras da palavra gratuito.

            As palavras têm vida e, por conta de cordiais efeitos quânticos, mudam de lugar ao seu bel prazer. Como é belo vê-las saltitantes frente a novos significados.
            Foram nessas palavras do poeta que o Thio Therezo pensou ao assistir àquela sessão do Supremão. Fosse num país conturbado como o nosso e tudo poderia parecer natural, porém anárquico. Mas não, a sessão em questão se deu na República de Hygina e, lá, surpreende muito a algumas almas mais atentas as constantes e convenientes releituras de palavras e conceitos.
Diga-se de passagem, nada melhor qualificado como uma releitura do que a possibilidade de se estender o significado de uma palavra à amplidão requerida, injetar nelas possibilidades ímpares, afogá-las em pareceres até que elas confessem significados novos, contraditórios até. Ninguém quer que uma palavra mantenha o mesmo significado que tinha à época, digamos, de Mussolini. Preciso é então modernizar o significado de muitas delas para que se ajustem aos novos tempos.
Por exemplo, a palavra gratuito. Desgastada, em tempos de gestores acelerados e empreendedores acelerantes, ela deve sim incorporar, em seu âmago, a possibilidade de cobrança, nem que seja a priori uma cobrança leve e aparentemente inofensiva. Nada mais natural, nada mais pós-moderno.
O Thio prestou muita atenção aos pareceres emitidos sobre aquela palavra e sobre a incorporação do contraditório significado. Em especial, a do douto que disse em alto e bom som:
As palavras significam aquilo que queremos que signifiquem...
A frase até parecia uma de um dos livros da Alice e o parecerista em questão, talvez preocupado com sua (inglória) fama de expropriador de frases alheias, mais do que depressa mencionou que o referido livro estava citado em um dos inúmeros apêndices da bibliografia de seu parecer, provavelmente no décimo quinto volume do processo, arquivado como material sigiloso na quarta gaveta à esquerda do escritório de um de seus fiéis assessores.
A palavra em questão iria assumir então, por quase unanimidade dos votos, a possibilidade de incorporar ao seu singelo e, até aquele momento, preciso significado justamente o seu oposto.
Isso, claro, não foi feito gratuitamente. Gratuito seria confundir o “e” com o “ou” em uma miscelânea que, mesmo juridicamente defensável, se constituiria em uma agressão inominável à lógica tradicional. Por isso, pensava o Thio, talvez os doutos estivessem se valendo de uma das lógicas paraconsistentes do Newton da Costa.
Pequena divagação aqui. O Thio é muito cioso de sua profunda amizade com o Newton e lembra com imenso carinho das inúmeras conversas que tiveram justamente à época da formulação conceitual dessas lógicas não tradicionais. O Thio, apesar da insistência em contrário do renomado lógico, nunca quis que seu nome fosse sequer mencionado relacionado com esses conceitos: minha contribuição foi ínfima, insiste o Thio em seu afã de se manter incógnito.
Mas não por isso ele declinou de pensar na conexão entre essa revolucionária teoria e o que ouvia naquela histórica sessão. Claro ficou, ao final, que independentemente do tipo de lógica considerada, não era disso que se tratava.
O poder de dar novos significados às palavras não tem nada a ver com argumentações lógicas, com convencimentos, com senso comum. É um simples e mero fato: aquele colegiado decidindo, cumpra-se! Cumpra-se, mas não sem antes todos, ouvidos e bocas, capas esvoaçantes, se deleitarem mutuamente por horas e horas.
Não gratuitamente, a palavra agora se orgulha, saltitante, pelo novo significado inserido a fórceps em suas entreletras.

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