Fazia uns bons dez anos que ele já
não tinha mais uma conta corrente naquele banco espanhol. No entanto, um tal de
Michel, autodenominado analista financeiro de sua conta, insistia em ligar a
ele para oferecer aquelas tais vantagens irrecusáveis.
Tratar com analistas financeiros e
corretores que insistem e insistem em te aporrinhar a vida não é algo que se
possa descrever assim tão facilmente. Há aqueles que se saem muito bem
conversando com essas espécimes, mesmo tendo que deixar muito trabalho esperando
por conta disso. Há, também, aqueles que se irritam facilmente com essa
insistência.
E há aqueles que passam por todos os
estágios desse doloroso processo. Sabe os famosos estágios do luto? Negação,
raiva, barganha, depressão e aceitação... Há também os estágios para se lidar
com corretores e analistas financeiros... a diferença é que, nesses casos, o
último estágio não é o de aceitação, e sim o da ironia.
Você começa falando com o Michel,
tentando explicar a ele, na vã esperança de que do outro lado da linha haja um
ser sensato e decente, que a sua conta já foi fechada há mais de dez anos. O
Michel irá então insistir que a conta está só inativa, mas não fechada e toca a
listar aquelas ofertas de investimentos que são simplesmente imperdíveis. Você,
ocupado que está, nega de novo que tenha uma conta com o banco espanhol e
desliga. Essa fase dura, sei lá, uns três ou quatro telefonemas, até que Michel
o alcança em um momento muito ocupado e potencialmente explosivo.
Vem aí o estágio da raiva em que
você, mal educado, não o deixa falar, e desliga o telefone na cara dele.
Quantas ligações? O suficiente até perceber que isso não irá parar assim tão
facilmente. Há treinamentos para os funcionários do banco, com yoga, técnicas
de Xao-Tsé-Yong e tudo o mais, para ele aguentar firme a sua irritação. Parece
que o banco até dá alguns prêmios para quem conseguir tirar mais do sério, mas
sem se irritar, os clientes. O funcionário do mês passado do banco espanhol,
dizem, foi um que conseguiu que o suposto cliente mastigasse e engolisse a
própria língua de raiva enquanto mantinha o ritmo cardíaco constante. Ganhou
até uma passagem para uma relaxante estadia em Barcelona.
Barganha. Você tenta, depois de
perceber que perder o humor não resolve, barganhar algo. Reafirma que a sua
conta não existe mais e, quase suplicante, pede que o seu telefone seja
retirado da lista de ex-clientes. Faz uma voz de quem está negociando um favor
e espera por dias melhores.
Mas, não adianta, nada disso
adiantou ao nosso amigo. Deprimido, ele agora atende o telefone e deixa o
outro, vencedor, falar e falar sobre as maravilhas de ser explorado pelo banco
espanhol. As melhores taxas (para eles), os melhores investimentos (para eles),
os melhores produtos (para eles)... E ele só responde que irá pensar no
assunto...
O telefone toca e nosso amigo
investe, finalmente, no último estágio.
- Alô?
- Alô, eu queria falar com...
- Michel!!! é você Michel?
- ... ahn? é sim...
- Mas você não morre tão cedo!
Estava mesmo para te ligar...
- É mesmo? eu...
- Michel, Michel... claro, eu não me
esqueço de você de jeito nenhum...
- Que bom... eu queria te
oferecer...
- Michel, escuta... estou meio sem
tempo para o seu papo furado de vendedor de túmulos. Mas faz o seguinte. Vende
dois ou três milhões daquelas ações que eu tenho aí...
- ... como assim? do que você está
falando...
- Michel, Michel gozador, você não
existe, cara... vai, arredonda e vende três milhões das ações, tá? Vi que elas
estão valendo 15 reais cada, não vá me vender por menos, tá?
- ... acho que você está enganado...
eu...
- enganado nada, acabo de ver, 15,02
por ação. E aí você faz o seguinte...
- ... péra...
- Mas Michel, quer sossegar? Estou
com pressa hoje. Faz o seguinte: deposita quinze milhões naquela conta secreta
que você controla pra mim, para o gasto do dia a dia. O resto, divide em três
partes e envia para aquelas contas no
exterior, partes iguais... não vá me fazer confusão dessa vez, viu? Nada pra
conta do deputado, nadinha... pra ele ver como é bom... e avisa o PH...
- ... não estou entendendo nada, o
senhor...
- Michel, o brincalhão de sempre.
Bom, é isso, deixa de ser preguiçoso que preciso disso pra ontem, tá? Tchau e
beijo na sua esposa, diz pra ela que estou com saudades daquele foundue que só
ela sabe fazer...
E desliga.
Dia seguinte, nosso amigo foi preso,
pois a linha do Michel estava grampeada e ele teve que se explicar com relação
a essa conversa. Quem era o deputado, e, principalmente, quais eram as suas
ligações com o juiz Paulo Henrique...
Ele bem que tentou se explicar, falou
da conta encerrada há anos, da insistência do banco, tentou dizer que estava
apenas tentando se ver livre do irritante Michel, mas isso foi mal entendido e
quase que ele foi indiciado por tentativa de homicídio. A seu favor e a contar
pelo teor da conversa, apenas o fato de que ele deveria ter muito dinheiro e,
nessas horas, as leis o favorecem. Em crimes financeiros, excesso de provas só
favorece o réu.
Depois de duas semanas, desistiu de
sua versão, a verdadeira, e propôs uma delação premiada. Delatou uma porção de
gente que só conhecia pelas notícias de jornais, inventou estórias e contatos,
conversas misteriosas e apelidos (isso eles gostam muito, aprofunda o mistério
das relações e agitam as conversas de botequim). Acabou até sendo acareado com
o tal Michel, que, parecia, tinha culpa em algum esquema. Ficou com pena do
pobre coitado, vai pagar o pato, ao que parece (talvez seja esse o último
estágio, a pena, vai saber...).
No acordo, livrou-se de todos os
possíveis processos, passados, presentes e futuros, recebeu seu passaporte de
volta e, de quebra, também a sua carteira de motorista que estava suspensa por
conta dos pontos conseguidos com multas por velocidade excessiva, todas elas,
aliás, anistiadas. A sua dívida com o IPTU foi reduzida e ele entrou em um tal
de REFIS com juros baixíssimos e trinta anos de prazo para pagar. Entrou também
na negociação da delação a quitação de seu imóvel financiado, o perdão de suas
dívidas com cartões de crédito de vários bancos além do cancelamento da pensão
que ele suava todo mês para pagar à sua ex-esposa.
Recebeu também vários brindes dos
patrocinadores: carne pra churrasco, um celular, uma generosa quota de remédios
e vitaminas, esfihas (das de promoção) por seis meses em qualquer uma das lojas
da rede, cursos no sistema S, um pato
amarelo plagiado de tamanho gigante, uma bolsa no idepê de Brasília...
Ele já planeja repetir a dose no ano
que vem... nada como ser um delator profissional nesse reality show.