[[Mais um conto da série "O que você pediria?" Agora com a letra "j"]]
Noites, por vezes, são muito silenciosas nesse apartamento herdado. Essas, por vezes me assustam, por vezes me excitam.
Noites, por vezes, são muito silenciosas nesse apartamento herdado. Essas, por vezes me assustam, por vezes me excitam.
Hoje,
lembrei-me dela. Do breve encontro no elevador, o cartão com o telefone, duas
noites bem pagas e o cartão resolveu se esconder entre tantos papéis naquela
primeira gaveta, esperando, quem há de saber?, sua vez nesse esconde-esconde
que virou a minha vida.
Mas hoje,
lembrei-me dele, do cartão. E dela, da dona da letra do cartão fujão. E de seus
gemidos, e de sua pele, corpo, fluidos, sorrisos... Lembranças imprecisas
aumentadas pelo tempo, pelas saudades de algo que talvez nem tenha acontecido.
Misto de lembranças e ficção, como seria bom se tivesse realmente acontecido do
jeito que agora me lembro. Ou aconteceu? Como é que a dona do cartão se lembra
de mim, afinal?
O
pensamento se evapora, o silêncio retorna e sobra eu, eu e meus livros, e meu
gato que me cafuneia, e a tartaruga Esperança. Já não deveriam ser suficientes
nesse apartamento?
Deveriam...
Ou não,
assim me relembram os silêncios da noite.
Ligo a
TV, que quase sempre me ignora, talvez pelo fato de que eu só a ligo prá
escutar o seu barulho. Vezes, até escolho um filme novo mas, na maioria, é um
que já conheço, que já tanto assisti zilhões de vezes, diálogos quase
decorados. São os melhores, jogando o nível de atenção a quase zero, permitindo
que o sono vença o desânimo, que nocauteie o silencio e as lembranças, forjadas
ou não.
Abro a
gaveta por fim e, quando a abro, percebo um cartão, deve ser ele, se escondendo
no meio de outros. Mãos ligeiras, vou atrás dele, mas qual-o-quê, ele já escapa
prá trás de umas fotos antigas, de contas já pagas, de bilhetes de loterias
vencidos, cartões de aniversário. Vejo o seu rabicho balançando jocosamente
para mim, mas quando minha mão se aproxima, lá se vai ele escapulindo outra
vez.
Nessa
perseguição de gato e rato, de cartão e mão, quem mais perde sou eu, claro, eu
a perco, perco um jeito de escapar desse eterno silêncio noturno, apesar do
barulho da TV, que me mata aos poucos.
A lembrança dela retorna,
seu beijo de despedida, carinhoso, em minhas bochechas ainda o sinto, ainda a
sinto colada ao meu corpo, ronronando como o gato que agora me olha com desdém.
Esse, prefere o silêncio das noites, parece curtir, desgosta do barulho, da TV
que seja, dos carros que habitam as ruas que sejam, do latido longínquo que
seja. Mas hoje, ele terá que se contentar com o que eu necessito.
Procuro um jeito de
encontrar afinal o cartão, um jeito para que ele me conduza até ela, um jeito
para que ela não recuse vir me abraçar, eu pago, você sabe disso, herança
recebida me dá certos luxos. Um jeito pra ela dormir comigo hoje, será que já
está ocupada por hoje?
Tenho sim tantas outras
possibilidades, testadas e aprovadas, mas é dela que sinto falta hoje, dela e
das lembranças que criei hoje. Não que as lembranças reais não fossem
suficientes para querê-la aqui ao meu lado, vai saber, tudo se confunde nas
profundidades dos silêncios.
Começa um filme iraniano na
TV com toda a sua própria lentidão, todo o seu silêncio. Que raios de canal é
capaz de passar esses filmes? Digo isso de irritação, pois até gosto deles em
meus dias de sossego, dias de atenção.
Mas foi sob o fundo
silencioso do filme que ouço então o barulho do andar de cima, camas rangentes
entre gemidos forçados. Urge então achar o cartão, urge então achar um jeito de
ligar a ela e salvá-la desse vizinho, um jeito de trazê-la, em linha reta, três
metros na vertical, nem se vestir é preciso. Mas o cartão foge mais uma vez de
mim, como se passasse incólume por entre os meus dedos ansiosos.
Procuro um jeito de trazê-la
prá perto. Será que ela ficaria por aqui alguns dias? Algumas noites,
silenciosas ou não? Será que aceitaria dividir a leitura de poemas comigo?
Aceitaria o pedido que tantas vezes pensei fazer? Moraria comigo aqui?
Dividiria comigo essa biblioteca herdada, todos esses livros? Um casamento com
comunhão de palavras e ideias? Deliro, nem sei se ela gosta de ler, se ela
precisa de mudança na vida, se o silêncio a incomoda tanto quanto a mim.
Procuro um jeito de acabar
com esse sufocante silêncio, se bem que o barulho da TV agora voltou, o olhar
de desdém do gato voltou, que só não é mais barulhento que a TV por não
produzir ruídos.
Abro a gaveta e o cartão
está lá, me olhando e suspirando desejos.
Ligo e dá caixa postal...
Depois do bip, deixe seu
recado, deixe seu desespero, deixe seus desejos, seus suspiros, seus gemidos,
seus silêncios, seus incômodos. Deixe tudo isso que eu retorno quando quiser.
A cama do vizinho de cima
volta a ranger.
Sem recados.
Procuro um jeito para
dar certo. Mas qual-o-quê, para esse silêncio não há jeito. Nem com jota nem
com gê...
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