quinta-feira, 20 de julho de 2017

Se for j, um jeito para dar certo.

[[Mais um conto da série "O que você pediria?" Agora com a letra "j"]]

            Noites, por vezes, são muito silenciosas nesse apartamento herdado. Essas, por vezes me assustam, por vezes me excitam.
            Hoje, lembrei-me dela. Do breve encontro no elevador, o cartão com o telefone, duas noites bem pagas e o cartão resolveu se esconder entre tantos papéis naquela primeira gaveta, esperando, quem há de saber?, sua vez nesse esconde-esconde que virou a minha vida.
            Mas hoje, lembrei-me dele, do cartão. E dela, da dona da letra do cartão fujão. E de seus gemidos, e de sua pele, corpo, fluidos, sorrisos... Lembranças imprecisas aumentadas pelo tempo, pelas saudades de algo que talvez nem tenha acontecido. Misto de lembranças e ficção, como seria bom se tivesse realmente acontecido do jeito que agora me lembro. Ou aconteceu? Como é que a dona do cartão se lembra de mim, afinal?
            O pensamento se evapora, o silêncio retorna e sobra eu, eu e meus livros, e meu gato que me cafuneia, e a tartaruga Esperança. Já não deveriam ser suficientes nesse apartamento?
            Deveriam...
            Ou não, assim me relembram os silêncios da noite.
            Ligo a TV, que quase sempre me ignora, talvez pelo fato de que eu só a ligo prá escutar o seu barulho. Vezes, até escolho um filme novo mas, na maioria, é um que já conheço, que já tanto assisti zilhões de vezes, diálogos quase decorados. São os melhores, jogando o nível de atenção a quase zero, permitindo que o sono vença o desânimo, que nocauteie o silencio e as lembranças, forjadas ou não.
            Abro a gaveta por fim e, quando a abro, percebo um cartão, deve ser ele, se escondendo no meio de outros. Mãos ligeiras, vou atrás dele, mas qual-o-quê, ele já escapa prá trás de umas fotos antigas, de contas já pagas, de bilhetes de loterias vencidos, cartões de aniversário. Vejo o seu rabicho balançando jocosamente para mim, mas quando minha mão se aproxima, lá se vai ele escapulindo outra vez.
            Nessa perseguição de gato e rato, de cartão e mão, quem mais perde sou eu, claro, eu a perco, perco um jeito de escapar desse eterno silêncio noturno, apesar do barulho da TV, que me mata aos poucos.
A lembrança dela retorna, seu beijo de despedida, carinhoso, em minhas bochechas ainda o sinto, ainda a sinto colada ao meu corpo, ronronando como o gato que agora me olha com desdém. Esse, prefere o silêncio das noites, parece curtir, desgosta do barulho, da TV que seja, dos carros que habitam as ruas que sejam, do latido longínquo que seja. Mas hoje, ele terá que se contentar com o que eu necessito.
Procuro um jeito de encontrar afinal o cartão, um jeito para que ele me conduza até ela, um jeito para que ela não recuse vir me abraçar, eu pago, você sabe disso, herança recebida me dá certos luxos. Um jeito pra ela dormir comigo hoje, será que já está ocupada por hoje?
Tenho sim tantas outras possibilidades, testadas e aprovadas, mas é dela que sinto falta hoje, dela e das lembranças que criei hoje. Não que as lembranças reais não fossem suficientes para querê-la aqui ao meu lado, vai saber, tudo se confunde nas profundidades dos silêncios.
Começa um filme iraniano na TV com toda a sua própria lentidão, todo o seu silêncio. Que raios de canal é capaz de passar esses filmes? Digo isso de irritação, pois até gosto deles em meus dias de sossego, dias de atenção.
Mas foi sob o fundo silencioso do filme que ouço então o barulho do andar de cima, camas rangentes entre gemidos forçados. Urge então achar o cartão, urge então achar um jeito de ligar a ela e salvá-la desse vizinho, um jeito de trazê-la, em linha reta, três metros na vertical, nem se vestir é preciso. Mas o cartão foge mais uma vez de mim, como se passasse incólume por entre os meus dedos ansiosos.
Procuro um jeito de trazê-la prá perto. Será que ela ficaria por aqui alguns dias? Algumas noites, silenciosas ou não? Será que aceitaria dividir a leitura de poemas comigo? Aceitaria o pedido que tantas vezes pensei fazer? Moraria comigo aqui? Dividiria comigo essa biblioteca herdada, todos esses livros? Um casamento com comunhão de palavras e ideias? Deliro, nem sei se ela gosta de ler, se ela precisa de mudança na vida, se o silêncio a incomoda tanto quanto a mim.
Procuro um jeito de acabar com esse sufocante silêncio, se bem que o barulho da TV agora voltou, o olhar de desdém do gato voltou, que só não é mais barulhento que a TV por não produzir ruídos.
Abro a gaveta e o cartão está lá, me olhando e suspirando desejos.
Ligo e dá caixa postal...
Depois do bip, deixe seu recado, deixe seu desespero, deixe seus desejos, seus suspiros, seus gemidos, seus silêncios, seus incômodos. Deixe tudo isso que eu retorno quando quiser.
A cama do vizinho de cima volta a ranger.
Sem recados.
           Procuro um jeito para dar certo. Mas qual-o-quê, para esse silêncio não há jeito. Nem com jota nem com gê...

Nenhum comentário:

Postar um comentário