quinta-feira, 6 de julho de 2017

Santan, já deu...


            Fazia uns bons dez anos que ele já não tinha mais uma conta corrente naquele banco espanhol. No entanto, um tal de Michel, autodenominado analista financeiro de sua conta, insistia em ligar a ele para oferecer aquelas tais vantagens irrecusáveis.
            Tratar com analistas financeiros e corretores que insistem e insistem em te aporrinhar a vida não é algo que se possa descrever assim tão facilmente. Há aqueles que se saem muito bem conversando com essas espécimes, mesmo tendo que deixar muito trabalho esperando por conta disso. Há, também, aqueles que se irritam facilmente com essa insistência.
            E há aqueles que passam por todos os estágios desse doloroso processo. Sabe os famosos estágios do luto? Negação, raiva, barganha, depressão e aceitação... Há também os estágios para se lidar com corretores e analistas financeiros... a diferença é que, nesses casos, o último estágio não é o de aceitação, e sim o da ironia.
            Você começa falando com o Michel, tentando explicar a ele, na vã esperança de que do outro lado da linha haja um ser sensato e decente, que a sua conta já foi fechada há mais de dez anos. O Michel irá então insistir que a conta está só inativa, mas não fechada e toca a listar aquelas ofertas de investimentos que são simplesmente imperdíveis. Você, ocupado que está, nega de novo que tenha uma conta com o banco espanhol e desliga. Essa fase dura, sei lá, uns três ou quatro telefonemas, até que Michel o alcança em um momento muito ocupado e potencialmente explosivo.
            Vem aí o estágio da raiva em que você, mal educado, não o deixa falar, e desliga o telefone na cara dele. Quantas ligações? O suficiente até perceber que isso não irá parar assim tão facilmente. Há treinamentos para os funcionários do banco, com yoga, técnicas de Xao-Tsé-Yong e tudo o mais, para ele aguentar firme a sua irritação. Parece que o banco até dá alguns prêmios para quem conseguir tirar mais do sério, mas sem se irritar, os clientes. O funcionário do mês passado do banco espanhol, dizem, foi um que conseguiu que o suposto cliente mastigasse e engolisse a própria língua de raiva enquanto mantinha o ritmo cardíaco constante. Ganhou até uma passagem para uma relaxante estadia em Barcelona.
            Barganha. Você tenta, depois de perceber que perder o humor não resolve, barganhar algo. Reafirma que a sua conta não existe mais e, quase suplicante, pede que o seu telefone seja retirado da lista de ex-clientes. Faz uma voz de quem está negociando um favor e espera por dias melhores.
            Mas, não adianta, nada disso adiantou ao nosso amigo. Deprimido, ele agora atende o telefone e deixa o outro, vencedor, falar e falar sobre as maravilhas de ser explorado pelo banco espanhol. As melhores taxas (para eles), os melhores investimentos (para eles), os melhores produtos (para eles)... E ele só responde que irá pensar no assunto...
            O telefone toca e nosso amigo investe, finalmente, no último estágio.
            - Alô?
            - Alô, eu queria falar com...
            - Michel!!! é você Michel?
            - ... ahn? é sim...
            - Mas você não morre tão cedo! Estava mesmo para te ligar...
            - É mesmo? eu...
            - Michel, Michel... claro, eu não me esqueço de você de jeito nenhum...
            - Que bom... eu queria te oferecer...
            - Michel, escuta... estou meio sem tempo para o seu papo furado de vendedor de túmulos. Mas faz o seguinte. Vende dois ou três milhões daquelas ações que eu tenho aí...
            - ... como assim? do que você está falando...   
            - Michel, Michel gozador, você não existe, cara... vai, arredonda e vende três milhões das ações, tá? Vi que elas estão valendo 15 reais cada, não vá me vender por menos, tá?
            - ... acho que você está enganado... eu...
            - enganado nada, acabo de ver, 15,02 por ação. E aí você faz o seguinte...
            - ... péra...
            - Mas Michel, quer sossegar? Estou com pressa hoje. Faz o seguinte: deposita quinze milhões naquela conta secreta que você controla pra mim, para o gasto do dia a dia. O resto, divide em três partes e  envia para aquelas contas no exterior, partes iguais... não vá me fazer confusão dessa vez, viu? Nada pra conta do deputado, nadinha... pra ele ver como é bom... e avisa o PH...
            - ... não estou entendendo nada, o senhor...
            - Michel, o brincalhão de sempre. Bom, é isso, deixa de ser preguiçoso que preciso disso pra ontem, tá? Tchau e beijo na sua esposa, diz pra ela que estou com saudades daquele foundue que só ela sabe fazer...
            E desliga.
            Dia seguinte, nosso amigo foi preso, pois a linha do Michel estava grampeada e ele teve que se explicar com relação a essa conversa. Quem era o deputado, e, principalmente, quais eram as suas ligações com o juiz Paulo Henrique...
            Ele bem que tentou se explicar, falou da conta encerrada há anos, da insistência do banco, tentou dizer que estava apenas tentando se ver livre do irritante Michel, mas isso foi mal entendido e quase que ele foi indiciado por tentativa de homicídio. A seu favor e a contar pelo teor da conversa, apenas o fato de que ele deveria ter muito dinheiro e, nessas horas, as leis o favorecem. Em crimes financeiros, excesso de provas só favorece o réu.
            Depois de duas semanas, desistiu de sua versão, a verdadeira, e propôs uma delação premiada. Delatou uma porção de gente que só conhecia pelas notícias de jornais, inventou estórias e contatos, conversas misteriosas e apelidos (isso eles gostam muito, aprofunda o mistério das relações e agitam as conversas de botequim). Acabou até sendo acareado com o tal Michel, que, parecia, tinha culpa em algum esquema. Ficou com pena do pobre coitado, vai pagar o pato, ao que parece (talvez seja esse o último estágio, a pena, vai saber...).
            No acordo, livrou-se de todos os possíveis processos, passados, presentes e futuros, recebeu seu passaporte de volta e, de quebra, também a sua carteira de motorista que estava suspensa por conta dos pontos conseguidos com multas por velocidade excessiva, todas elas, aliás, anistiadas. A sua dívida com o IPTU foi reduzida e ele entrou em um tal de REFIS com juros baixíssimos e trinta anos de prazo para pagar. Entrou também na negociação da delação a quitação de seu imóvel financiado, o perdão de suas dívidas com cartões de crédito de vários bancos além do cancelamento da pensão que ele suava todo mês para pagar à sua ex-esposa.
            Recebeu também vários brindes dos patrocinadores: carne pra churrasco, um celular, uma generosa quota de remédios e vitaminas, esfihas (das de promoção) por seis meses em qualquer uma das lojas da rede, cursos no sistema S, um pato amarelo plagiado de tamanho gigante, uma bolsa no idepê de Brasília...
            Ele já planeja repetir a dose no ano que vem... nada como ser um delator profissional nesse reality show.

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