quinta-feira, 23 de agosto de 2018

De cacos e folhas e portas - parte 1


            Por cima de seu ombro ele olhou rapidamente e ainda teve tempo de ver a porta bater e ainda escutou o barulho que as portas gostam de fazer quando batem apressadas e repentinas. Aquela imagem, rápida, ainda ecoou em sua mente por um tempo e foi se encontrar com outra imagem, ao mesmo tempo igual e diferente, atual e longínqua. Outra porta mas a mesma pessoa saindo, outras pessoas do outro lado da porta mas o mesmo olhar por cima do ombro, a mesma calma, a mesma falta de sorriso nos lábios. O mesmo conformismo.
            As duas imagens intercalaram-se em sua mente ainda por algum tempo, ainda por aquela imensidão de instantes que sua cabeça levou para parar de espiar por sobre o ombro e virar para a frente. E pensou talvez que esta imagem poderia ser simbólica. Simbolizava a sua vida. Símbolos, por que não?
            Por cima de seu ombro pôde ver finalmente que mais uma vez algo em sua vida terminava. Terminava de uma maneira implacável e dura, mas lenta. Aliás, nada em sua vida terminava abruptamente: era sempre um fim lento e doloroso como o cair de uma folha machucando o ar em que passa e que quando chega ao chão, depois de uma longa e deslizante flutuação, já cortou tanto o ar, já machucou tanto que já não se tem mais a esperança de que o chão chegaria algum dia. Finalmente o chão chega, estamos certos disso, mas nem por isso aceitamos facilmente esse fato, tão acostumados estávamos com o doce flutuar da folha. Quando a folha finalmente chega ao chão ainda temos que nos certificar de que é verdade, ainda gastamos um tempo a nos convencermos de que isso de fato ocorrera, como se houvesse alguma eventual possibilidade de a folha seguir flutuando eternamente no ar.
            A folha já no chão e ainda não se sabe que tudo acabou, e só quando se bate a porta, e só quando se olha o passado por cima do ombro é que se tem a certeza de que não dá mais para seguir vivendo desta maneira, que aquela casa já não é mais a sua e que não se deve insistir, nem uma vez que fosse, em viver com eles, tempos atrás, ou com ela, que com ela já não dá mais pra viver, como agora ou como hoje.
            E mesmo que o olhar por cima do ombro fosse o mesmo, e não o é definitivamente, a batida da porta é diferente. A primeira vez com aquela impaciência de quem sabe de tudo, de quem tem a ingênua certeza de que algo o espera do outro lado. E a segunda com a impaciência de quem quer ir logo embora para algum lugar onde possa pensar e relembrar e tentar descobrir em que errara. E recomeçar.
            O passo lento e a certeza de que não voltaria a entrar por aquela porta que já bateu e acertar as arestas como em tantas vezes fizera, a se explicar como se a pedir desculpas, sim e tantas vezes o fizera com aquela mania que tinha, que ainda tem? de tentar preservar o que já não dá mais para preservar. Tantas vezes ele já se explicara a ela e tantas vezes a folha caindo, machucando o ar, que sentia que talvez aquilo pudesse seguir indefinidamente, mas na realidade não, o chão chega e a folha tem de parar e o chão pára a folha e o chão nada mais é que as atitudes que hoje toma, nada mais é que as mudanças que se nota algum dia quando se acorda e se olha no espelho que sim, a barba por fazer, sim os olhos vermelhos pela insônia, que sim, uma espinha madura no rosto apesar da idade e que sim, que finalmente chegou o chão. Que finalmente chegou o dia de se tomar alguma atitude definitiva. Do chão não passa e não passa mais pela garganta todas aquelas explicações que ela exige e que todos exigiam e que do chão não passa mais aquelas cobranças todas que ele próprio fazia a ela, como é possível viver desta maneira? e que hoje, sim, a barba por fazer, já não tem mais nenhum sentido. Do chão não passa o jogo social que tanto tempo os mantivera juntos a passarem, às vezes rindo e às vezes não, pela mesma porta que agora bate violentamente às suas costas.
            Teria sido cruel com o pai? Talvez, mas fora acusado por ele de tantas coisas e tudo o mais e de tal jeito que parecia estar expulsando-o de casa e ele não aguentou e foi-se de lá no mesmo instante. Ou melhor, a pedido da mãe, ainda aguentou almoçar lá naquele dia. Com o seu eterno otimismo maternal ela achava que tudo se resolveria. Era só uma questão de sentarmos todos juntos à mesa, talvez até passassem por nossas mentes os belos momentos em que  almoçamos ou jantamos juntos nestes anos todos e quem sabe, por um passe de mágica, tudo se encaixaria, tudo se resolveria e nos abraçaríamos chorando de remorsos e alegria. Ê, vida! Mas não, nada se resolve assim tão ingenuamente e de fato nada se resolveu depois daquele interminável e estranho e silencioso e deprimente almoço junto à família. Nada a fazer, ainda pensou, com a garganta meio que entalada pelas lágrimas de raiva que segurava e principalmente pelas ervilhas, excessivamente salgadas naquele dia.
            Nada resolvido, ao menos na ótica de sua mãe, e ele se foi sem dizer palavra, batendo a porta. Mas antes de ir, aquele interminável almoço, a folha a cair, deu-lhe pela primeira vez a medida de que nada iria terminar na sua vida como uma bomba que explode e arrasa, pois ele não teria a coragem de fazê-la explodir. Os outros montavam a bomba com o devido esmero, ajustavam cuidadosamente o pavio e lhe davam o fósforo já devidamente aceso. Só a ele, porém, competia fazê-la explodir. Mas, qual-o-quê, ele soprava o fósforo como o vento que agora mantém a folha no ar, apagando-o e mantendo-a flutuando.
            Injusto? Se pensasse um pouco mais acharia que sim. Mas não queria pensar nisso agora que já saíra definitivamente de casa e a deixava chorando na sala do outro lado da porta a tentar entender o que é que aquela espinha no rosto dele teria a ver com a sua súbita mudança e nunca saberia, nunca descobriria o porquê, por que é que ele desta vez ficara calado no seu canto a olhá-la, apenas a olhá-la e não fizera nada mais que olhá-la bem em seus olhos enquanto ela fazia os seus discursos e cobranças. Sua atitude passiva a perturbou tanto e de tal maneira que ela não conseguia nem se concentrar em seus argumentos e ela tinha toda a razão de cobrar dele tudo aquilo que agora cobrava, como em tantas outras vezes já cobrara, e a sentir-se cobrada também, por que não? pelas neuroses dele e sentiu-se estranha ali naquela sala a tentar entender as reações dele que lhe eram estranhas hoje e a pensar que mais uma vez perdera o total domínio da situação, por mais uma vez algo acabara e sua vida como uma grande explosão, algo abrupto e doloroso, sem ter o mínimo controle sobre nada.



[[Esse conto, De cacos e folhas e portas, apareceu em meu livro de contos Ledos Enganos, Meras Referências, publicado em 1996 pela Editora Escrituras. Vou publicá-lo aqui dividido em duas partes]]

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