Por
cima de seu ombro ele olhou rapidamente e ainda teve tempo de ver a porta bater
e ainda escutou o barulho que as portas gostam de fazer quando batem apressadas
e repentinas. Aquela imagem, rápida, ainda ecoou em sua mente por um tempo e
foi se encontrar com outra imagem, ao mesmo tempo igual e diferente, atual e
longínqua. Outra porta mas a mesma pessoa saindo, outras pessoas do outro lado
da porta mas o mesmo olhar por cima do ombro, a mesma calma, a mesma falta de
sorriso nos lábios. O mesmo conformismo.
As
duas imagens intercalaram-se em sua mente ainda por algum tempo, ainda por
aquela imensidão de instantes que sua cabeça levou para parar de espiar por
sobre o ombro e virar para a frente. E pensou talvez que esta imagem poderia
ser simbólica. Simbolizava a sua vida. Símbolos, por que não?
Por
cima de seu ombro pôde ver finalmente que mais uma vez algo em sua vida
terminava. Terminava de uma maneira implacável e dura, mas lenta. Aliás, nada
em sua vida terminava abruptamente: era sempre um fim lento e doloroso como o
cair de uma folha machucando o ar em que passa e que quando chega ao chão,
depois de uma longa e deslizante flutuação, já cortou tanto o ar, já machucou
tanto que já não se tem mais a esperança de que o chão chegaria algum dia.
Finalmente o chão chega, estamos certos disso, mas nem por isso aceitamos
facilmente esse fato, tão acostumados estávamos com o doce flutuar da folha.
Quando a folha finalmente chega ao chão ainda temos que nos certificar de que é
verdade, ainda gastamos um tempo a nos convencermos de que isso de fato
ocorrera, como se houvesse alguma eventual possibilidade de a folha seguir
flutuando eternamente no ar.
A
folha já no chão e ainda não se sabe que tudo acabou, e só quando se bate a
porta, e só quando se olha o passado por cima do ombro é que se tem a certeza
de que não dá mais para seguir vivendo desta maneira, que aquela casa já não é
mais a sua e que não se deve insistir, nem uma vez que fosse, em viver com
eles, tempos atrás, ou com ela, que com ela já não dá mais pra viver, como
agora ou como hoje.
E
mesmo que o olhar por cima do ombro fosse o mesmo, e não o é definitivamente, a
batida da porta é diferente. A primeira vez com aquela impaciência de quem sabe
de tudo, de quem tem a ingênua certeza de que algo o espera do outro lado. E a
segunda com a impaciência de quem quer ir logo embora para algum lugar onde
possa pensar e relembrar e tentar descobrir em que errara. E recomeçar.
O
passo lento e a certeza de que não voltaria a entrar por aquela porta que já bateu
e acertar as arestas como em tantas vezes fizera, a se explicar como se a pedir
desculpas, sim e tantas vezes o fizera com aquela mania que tinha, que ainda
tem? de tentar preservar o que já não dá mais para preservar. Tantas vezes ele
já se explicara a ela e tantas vezes a folha caindo, machucando o ar, que
sentia que talvez aquilo pudesse seguir indefinidamente, mas na realidade não,
o chão chega e a folha tem de parar e o chão pára a folha e o chão nada mais é
que as atitudes que hoje toma, nada mais é que as mudanças que se nota algum
dia quando se acorda e se olha no espelho que sim, a barba por fazer, sim os
olhos vermelhos pela insônia, que sim, uma espinha madura no rosto apesar da
idade e que sim, que finalmente chegou o chão. Que finalmente chegou o dia de
se tomar alguma atitude definitiva. Do chão não passa e não passa mais pela
garganta todas aquelas explicações que ela exige e que todos exigiam e que do
chão não passa mais aquelas cobranças todas que ele próprio fazia a ela, como é
possível viver desta maneira? e que hoje, sim, a barba por fazer, já não tem
mais nenhum sentido. Do chão não passa o jogo social que tanto tempo os
mantivera juntos a passarem, às vezes rindo e às vezes não, pela mesma porta
que agora bate violentamente às suas costas.
Teria
sido cruel com o pai? Talvez, mas fora acusado por ele de tantas coisas e tudo
o mais e de tal jeito que parecia estar expulsando-o de casa e ele não aguentou
e foi-se de lá no mesmo instante. Ou melhor, a pedido da mãe, ainda aguentou
almoçar lá naquele dia. Com o seu eterno otimismo maternal ela achava que tudo
se resolveria. Era só uma questão de sentarmos todos juntos à mesa, talvez até
passassem por nossas mentes os belos momentos em que almoçamos ou jantamos juntos nestes anos
todos e quem sabe, por um passe de mágica, tudo se encaixaria, tudo se
resolveria e nos abraçaríamos chorando de remorsos e alegria. Ê, vida! Mas não,
nada se resolve assim tão ingenuamente e de fato nada se resolveu depois
daquele interminável e estranho e silencioso e deprimente almoço junto à
família. Nada a fazer, ainda pensou, com a garganta meio que entalada pelas
lágrimas de raiva que segurava e principalmente pelas ervilhas, excessivamente
salgadas naquele dia.
Nada
resolvido, ao menos na ótica de sua mãe, e ele se foi sem dizer palavra,
batendo a porta. Mas antes de ir, aquele interminável almoço, a folha a cair,
deu-lhe pela primeira vez a medida de que nada iria terminar na sua vida como
uma bomba que explode e arrasa, pois ele não teria a coragem de fazê-la
explodir. Os outros montavam a bomba com o devido esmero, ajustavam
cuidadosamente o pavio e lhe davam o fósforo já devidamente aceso. Só a ele,
porém, competia fazê-la explodir. Mas, qual-o-quê, ele soprava o fósforo como o
vento que agora mantém a folha no ar, apagando-o e mantendo-a flutuando.
Injusto?
Se pensasse um pouco mais acharia que sim. Mas não queria pensar nisso agora
que já saíra definitivamente de casa e a deixava chorando na sala do outro lado
da porta a tentar entender o que é que aquela espinha no rosto dele teria a ver
com a sua súbita mudança e nunca saberia, nunca descobriria o porquê, por que é
que ele desta vez ficara calado no seu canto a olhá-la, apenas a olhá-la e não
fizera nada mais que olhá-la bem em seus olhos enquanto ela fazia os seus
discursos e cobranças. Sua atitude passiva a perturbou tanto e de tal maneira
que ela não conseguia nem se concentrar em seus argumentos e ela tinha toda a
razão de cobrar dele tudo aquilo que agora cobrava, como em tantas outras vezes
já cobrara, e a sentir-se cobrada também, por que não? pelas neuroses dele e
sentiu-se estranha ali naquela sala a tentar entender as reações dele que lhe
eram estranhas hoje e a pensar que mais uma vez perdera o total domínio da
situação, por mais uma vez algo acabara e sua vida como uma grande explosão,
algo abrupto e doloroso, sem ter o mínimo controle sobre nada.
[[Esse conto, De cacos e folhas e portas, apareceu em meu livro de contos Ledos Enganos, Meras Referências, publicado em 1996 pela Editora Escrituras. Vou publicá-lo aqui dividido em duas partes]]
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