quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Simetria - parte III

          Hoje eu acredito que o quadro que ela queria pintar esteve o tempo todo muito claro em sua mente. Só que ela não conseguiu transcrevê-lo em cores sobre aquela tela. E isto foi exasperando-a apesar de meu incentivo, às vezes, e também de meu desincentivo inconsciente, em outras. No fundo não aceitava o fato de não podermos ter uma vida normal sem estas afetações todas dela que insistia e muito em fazer tal quadro. Não acho razoável que alguém se destrua a esse ponto. Quando disse isso a ela, ela chorou sentidamente e não disse palavra. Como pude ser tão cruel? Senti-me o mais imbecil dos seres humanos, ainda mais por causa do olhar repressor deste animal irracional que dividia com a gente esta casa. 
          Ocupei-me por horas na difícil tarefa de desdizer o que tinha dito, em desfazer o já feito, em pedir desculpas e afins. No fim, convenci-a a não se jogar pela janela (e nem me jogar tampouco) e, mais algumas horas, nos amamos longamente, sempre às vistas de um par de olhos vidrados e ameaçadores no escuro, que esperava sempre nosso último suspiro antes de assumir o seu posto na cama e dormir e ronronar e sonhar, se é que os gatos também sonham quando dormem, e soltar seus pelos e me irritar aos extremos com seu desdém e interesse. 
          Um dia, outra quinta-feira, ela quebrou vários pratos, espalhou pela casa as tintas de seu único e inacabado quadro e desapareceu. Isso já acontecera antes e ela voltara logo depois, calada e sem explicações. Não me preocupei de fato. 
          Três dias depois encontraram-na morta na Marginal. Deprimido mas prático, fui ao IML reconhecer o corpo (é tão difícil chamá-la de corpo). Não bastasse toda esta situação e o infeliz do rapaz que me atendeu insistia que insistia em me contar todos os detalhes, todos os escabrosos e sangrentos detalhes. Não queria ouvir mas o cara insistia, excitava-se todo com isto, por que será que tanta gente gosta tanto destas estórias?
          A mim, não me excitam as doenças e as mortes, a mim não interessa saber como as pessoas morrem, principalmente os amigos. Principalmente ela. O simples fato de ela ter morrido já foi suficientemente terrível para mim. 
          Demorei, e muito, a voltar a viver normalmente, a ter uma vida social. Nestas horas, perdemos um pouco de nossas próprias referências. Meti-me no trabalho e só. Às noites passávamos os dois, gato e eu, cada qual em seu canto a pensarmos e recordarmos. Só um mês depois arrumei a bagunça de tintas que ela deixara em meu ex-canto. Ainda outras cinco quintas-feiras para que eu levasse todo aquele material, tripé e pincéis e tintas, para o quartinho dos fundos onde esperou conformado sete ou oito quintas-feiras mais para ir definitivamente para o lixo. Foi só depois que o gato um dia entrou no quarto, derrubou o tripé e derramou as tintas que eu resolvi que afinal já era tempo; tempo de me livrar desta tralha toda, incluindo o gato e voltar à vida anterior. Já muitas quintas-feiras se passaram e é preciso reagir. 
          Mas do gato não pude me livrar facilmente. Como não me agrada muito churrasquinho de gato resolvi esquecê-lo em um dos cantos quaisquer desta cidade, que canto é o que não falta nela. Decisão tomada, a consumação no entanto foi sendo adiada e adiada. Temos muito a aprender com nossas atitudes. Um dia choveu, em outro estava cansado, mais um e tem um jogo interessante na TV e logo o gato já não incomoda mais, ele só me lembrava a Helena de vez em quando, nestes momentos em que se deitava em um canto e me olhava distante. 
          Nada como uma quinta-feira atrás de outra para nos conformarmos e esquecermos de tudo. Até um dia em que trouxe uma amiga para dormir comigo, tanto tempo desde a Helena…
          Fiz um dos pratos que Helena me ensinou e impressionei um bocado. É preciso; na primeira vez sempre é preciso impressionar. Dormimos juntos, nos amamos com um gosto amargo na boca. Não sei porque pensei que estivesse traindo algo. Mas nos amamos assim mesmo e, acho, não decepcionei. 
          Dormimos abraçados e eu sonhei com um gato, se é que é possível se sonhar com um gato. Dois olhos imensos de gato a me seguir por onde é que eu fosse, a me seguir e perseguir, negros olhos. Um gato que me olhava e dizia o tempo todo simetria. A cada passo meu, ouvia simetria, virava-me e lá estava ele focando-me, ameaçando-me. 
          – Simetria – disse-me por fim e pulou em cima de mim. Acordei exaltado: dois olhos se abriram curiosos no escuro e logo depois voltaram a se fechar e dormiram.
          Olhei em volta e ela já tinha ido. Um bilhete me dizia que tinha sido ótimo, que deveríamos nos ver de novo e blá-blá-blá e que não podia ficar mais mas não queria me acordar e tchau e um beijo. 
          Um pesadelo é um pesadelo e ponto final. Volta-se a dormir mas ele não sai da cabeça. Dormi bem, no entanto. Só fui acordar com alguém me arranhando a sola do pé. A gostosa sensação de algumas unhas me arranhando a sola do pé para me acordar. 

São Paulo, 1992 - 1993



[[ Esse conto, Simetria, apareceu na VIII Antologia Alberto Renart, 1995 e, depois, em meu livro de contos Ledos Enganos, Meras Referências, publicado em 1996 pela Editora Escrituras. As duas primeiras partes foram publicadas nas semanas anteriores e, hoje, aparece a última parte. ]]

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