quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Simetria - parte II

          Após qualquer quinta-feira, inexoravelmente seguirão outras e outras mais se seguirão depois numa rapidez estonteante e talvez seja por isso que certas pessoas insistem em dizer que o tempo voa. De fato, já algumas dezenas de quintas-feiras se passaram desde aquela que descrevi acima, desde aquela primeira em que dividimos este quarto. Dezenas e dezenas e logo logo uma centena e cá estamos a recordar tudo aquilo. 
          A recordar que pouco a pouco fui cedendo um espaço meu a Helena e a este gato também. Antes deles, vivi sete anos sozinho, desde o meu primeiro salário. Um espaço em minha vida, duramente conquistado e que via ir por água abaixo frente ao ataque frontal e indiscutível dela e dele. De seu gato que pouco a pouco foi ocupando um cantinho em minha (nossa) cama. E logo a imagem noturna seria os três a dormirem, roncarem e ronronarem juntos, em um estranho, mas agradável, reconheço, uníssono. 
          Hoje eu sei que o gato dormindo em nossa cama foi algo que cedi a ela e não a ele. No começo sempre cedemos muito e só depois nos damos conta do estrago feito em nossas vidas. 
          Fomos vivendo, satisfeitos os três, o nível gastronômico em alta pois Helena é uma grande cozinheira. Foi só com o tempo que percebi que Helena tinha lá suas depressões. Sou muito desligado dessas coisas e, além disso, tinha muito trabalho por aquela época. Nem sempre tudo acontece da maneira que deve ser, nem sempre percebemos o que deve ser percebido. Vez por outra eu a encontrava em um canto a olhar o infinito, seu olhar a passar por mim como se eu não existisse e atravessar tudo à sua frente até chegar a algo que não distingo  muito bem onde é que é, algo bem longínquo. Olhar assustador, pelo menos a mim que não conheço muito estas coisas, que me contento com o chão a chão de tudo. 
          Na primeira vez afaguei seus cabelos e ela voltou rapidamente de onde quer que estivesse à minha companhia, àquela sala e me sorriu constrangida, levantou-se e me deixou lá sozinho. 
          – O que foi? – perguntei-lhe depois.
          – Não sei.
          Sua resposta direta foi tão forte que nem prossegui no assunto, melhor esquecer tudo e seguir vivendo. Mas percebi com o tempo que aquele seu olhar não era para mim, não era para ninguém a não ser ela própria, a não ser, talvez eu nunca tenha a certeza, também a seu gato. 
          Um dia brigamos. Uma briga curta, mas agressiva, daquelas em que dizemos coisas que não queremos dizer, em que cutucamos as feridas alheias. Briga curta e logo cada um foi para o seu canto magoado. Agora ela dorme tranquila, ressona tranquilamente. E eu a velo. Tenho medo. Medo de que isto se repita, que nos acabemos pouco a pouco nestas picuinhas do dia-a-dia, neste emaranhado de pequenas agressões em que, às vezes, se transformam os relacionamentos. Acordei com ela me arranhando a sola dos pés. Ainda gastei alguns instantes para percebê-la lá a me olhar. Tinha um olhar baixo e distante. Abracei-a daquele jeito todo especial. 
          Foi com grande alegria, confesso, que um dia a vi chegar em casa exultante, meio que tropeçando no farto material de pintura que trouxe junto. Perdi mais um canto, um canto onde gostava de ficar lendo e escutando música, mas não reclamei. Tal foi o seu encantamento ao desembarcar em meu escritório, armar o tripé e espalhar por cima de minha mesa os potes de tinta e pincéis que nem pude, nem quis é bem verdade, reclamar um tantinho que fosse. 
          A ocupação foi total e, ao que pareceu de início, permanente. Ficava lá horas a rabiscar e planejar o seu quadro. Seu olhar já não me assustava mais, como poderia? É certo que ainda se deprimia às vezes mas destas vezes tornava-se faladora, contava-me seus sonhos e seus projetos frustrados, tentava me convencer de sua total impossibilidade de sequer pintar um quadro que fosse. O fato de eu também não poder fazê-lo, argumentava eu às vezes, não era para ela sequer um consolo. 
          Em todo caso, esta foi a melhor época de nosso relacionamento, por que não dizê-lo de minha vida. Nunca tive destas preocupações ditas psicológicas nem sou um bom ouvinte mas acho que me saí bem em meu convívio com ela. 


[[ Esse conto, Simetria, apareceu na VIII Antologia Alberto Renart, 1995 e, depois, em meu livro de contos Ledos Enganos, Meras Referências, publicado em 1996 pela Editora Escrituras. A primeira parte foi publicada na semana passada e a última aparecerá na próxima quinta-feira. ]]

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