quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Aljube, Resistência e Liberdade



          Descendo lá do Castelo de São Jorge pela rua dos trilhos, pouco antes da Sé, lado direito, há o Museu Aljube, Resistência e Liberdade. No prédio que abrigava os presos políticos do regime salazarista é possível agora ter uma clara noção daqueles tempos sombrios de Portugal, mas também das técnicas de regimes totalitários.
Fernando Pessoa, fazendo o caminho inverso e indo em direção ao Castelo, em seu guia “Lisboa, o que o turista deve ver”, menciona assim esse prédio: Um pouco mais acima, onde era antigamente o palácio do arcebispo D. Miguel de Castro, é a cadeia de mulheres conhecida por Aljube. Não merece a nossa atenção excepto no que respeita ao passado histórico do próprio edifício. Mas isso foi antes de Salazar, pois esse guia foi escrito provavelmente em 1925.
Logo no primeiro andar, compartilhando o espaço sobre Portugal do século XX, há um vídeo em que se repete e se repete um famoso discurso de Salazar por ocasião do décimo aniversário do golpe:

“... não discutimos Deus e sua virtude, não discutimos a autoridade e o seu prestígio, não discutimos a glória do trabalho e o seu dever, não discutimos a família e a sua moral, não discutimos a pátria e a sua história...” (Salazar, 1936).

          Repetido ad nauseam pela voz crescentemente irritante do ditador, esse mantra ocupa todo o espaço, penetra insolentemente nos ouvidos dos presentes, incomoda: “não discutimos, não discutimos, não discutimos”. É o começo do mal estar.

          As celas, a vigilância, as torturas, os interrogatórios, a enfermaria.
          Os processos Kafkanianos, a censura.
      Mas também a resistência, as guerras coloniais, o desgaste, a decadência desse regime depois da morte do ditador.
          Os cravos, o 25 de abril.
          Difícil não pensar que as ditaduras são muito parecidas em suas crueldades. Pouco mais ou menos, mais tecnológicas ou não, todas se parecem. Só diferem na forma em que terminam, com alguma ruptura (ou ao menos um símbolo) ou num grande acordo de convivência dita pacífica mas que, com o tempo, irá cobrar o seu preço.
          Na visita, cruzei com dois grupos de professores. Estavam lá, a convite, para conhecerem as atividades do museu e poderem organizar visitas de seus alunos.
          Oficinas, exposições. É preciso não esquecer, é preciso se ter memória, é preciso deixar claro o absurdo das ditaduras.

          A caminho da Praça do Comércio, o Thio Therezo comentou comigo que a ditadura de 1964 no Brasil não teve um marco que simbolizasse o seu final, não teve uma ruptura, só uma transição incorporando no novo regime o velho, o de sempre. Temos marcos para o início, para os vários recrudescimentos, mas não para o seu final. Nada de cravos, nada de 25 de abril.
          E se o final está em aberto, em aberto estará.
          Talvez por isso alguns defendem os crimes de tortura, de estupro e de fuzilamentos sumários sem sequer receber uma advertência institucional, como se propagar tais crimes fosse uma mera questão de liberdade de expressão. Talvez por isso revisionistas supremos rebaixam o status da ditadura a mero movimento. Talvez por isso o silêncio das tais instituições que, dizem, estão em pleno funcionamento.
          Talvez por isso, talvez, talvez.
          Passamos pela Sé e pela Santo Antônio e o Thio cantarolou enquanto observávamos as pombas na pracinha:
                    Grândola, vila morena
                    Terra da fraternidade
                    O povo é quem mais ordena
                    Dentro de ti, ó cidade
          O céu nublado da tarde de Lisboa chorava o nosso desânimo.

                    Lisboa, outubro de 2K18

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Mestres treineiros



          Dia outro, Thio Therezo chegou entusiasmado e, assim, contou-nos que tinha recebido o seu certificado de treinador de tartarugas de corrida, grau mestre. Finalmente, diz ele, pois simples não é, nem corriqueiro, imagine-se se poderia ser!
          Recordou-nos, mais uma vez, todo o processo que era chegar a tal honraria. O primeiro passo é convencer um dos três mestres supremos que estão habilitados a ministrarem treinamento para treinadores de tartarugas de corrida. E não é fácil isso, pois por conta da dedicação inerente a tal treino, eles não podem aceitar mais do que dezenove alunos por vez e, sabe-se, candidatos não faltam.
Dezenove alunos, divididos entre todos os três mestres supremos. Claro que por esse número não ser divisível por três, há entre eles uma silenciosa mas republicana porém encarniçada disputa por espaço. Quem tem mais alunos, é sempre melhor visto nessa sociedade, pois aqui, ao contrário de outros lugares, quem ensina está no topo da cadeia de prestígios sociais.
          O primeiro critério a ser analisado é o da maturidade. É coisa séria, é preciso ter vivência, e muita diga-se de passagem. Não é como assumir um desses cargos de poderes ilimitados pouco após sair da adolescência e decidir qualquer coisa que lhe venha à cabeça baseado apenas em suas convicções. Prá certas coisas, importa muito já ter vivido, ter experiências outras, ter assimilado o respeito ao outro e à sociedade, saber ouvir além de saber falar sem arrogância, não ser dono da verdade. E uma dessas coisas é justamente, ensina-nos um supremo mestre, a arte do treinamento de tartarugas de corrida.
          Não menos que quarenta anos de idade serão necessários para sequer ter a primeira lição. Aqui não há exceções, nem auto intitulados notáveis garantindo que alguém de menos idade está preparado, que é um gênio da raça e coisa e tal. Sem exceções, portanto. E, em geral, não menos que outros vinte anos serão necessários para se conseguir o grau de mestre, o grau que o Thio tanto se orgulha em ostentar agora.
          Nem custa dizer o alto grau de desistências, nesse mundo de tantas urgências.
          Pois a primeira fase do treinamento consiste de uma imersão espiritual de seis meses na colina sagrada Tãr Toul (norte da China, onde mais?). Nesse momento, de profunda meditação, é permitida apenas a emissão de dezenove palavras ao dia, o que nos leva a considerar muito bem o valor de cada sílaba pronunciada. O número dezenove, diga-se de passagem e o leitor atento já deve ter desconfiado disso, é considerado um número sagrado para os mestres treinadores e o motivo para tal perde-se nas incertezas do passado. Para qualquer uma das inúmeras versões da real razão, e versão não falta, há contestações e discussões históricas. O Thio, curioso que é, tentou uma vez esclarecer as verdadeiras origens dessa sacritude, mas não resistiu a tantas pré-mentiras e pós-verdades e sucumbiu finalmente à aceitação pura e simples de que o dezenove é de fato um número sagrado. E ponto final.
          Sim, após uma delicada análise, os mestres supremos o aceitaram como aluno e um deles foi designado para o não corriqueiro treinamento. O Thio o descreveu como sendo aquele cara de idade indefinida e sabedoria consolidada, o que mais dizer?
E o treinamento começou. Além do estágio de reflexão, passaram-se dois anos de intensas leituras e conversas antes que o Thio tivesse sequer algum contato com a tartaruga escolhida para ele. Uma das bases do treinamento é a exclusividade. Nem duas, nem dez, nem centenas de tartarugas, mas sim uma a ser treinada a cada vez. Poucos sabem, mas elas são muito sensíveis nesse aspecto e se suspeitarem que o treinador não está se concentrando somente nela, o boicote acontece e dessa tartaruga treinador algum, mestre, grão mestre ou supremo, irá fazê-la readquirir a confiança necessária.
          E assim vai o treinamento. Uma vez ao ano, há uma corrida quando são concedidos os graus de maestria aos treinadores. O de mestre é dado ao melhor colocado na corrida, dentre os que ainda não o sejam, e o de grão mestre àquele que, sendo mestre, consegue ganhar uma corrida com uma tartaruga distinta da qual conseguiu ascender à maestria. Nem precisa ser dito que há pouquíssimos grãos mestres, principalmente que não é bem visto no mundo dos treinadores que alguém, ao adquirir o título de mestre, abandone de imediato a tartaruga responsável por tal feito. É de bom tom que a parceria ainda permaneça por alguns anos, até a tartaruga dar sinais inequívocos de que não quer mais competir. Só aí, o agora mestre pode se sentir à vontade para treinar novas tartarugas.
          Houve um famoso caso de abandono imediato da tartaruga que foi severamente punido com um silêncio dos pares que durou os quinze anos que o mestre ainda viveu, tornado alcoólatra por remorsos de sua insensibilidade.
          Mas não queremos aqui dissertar mais sobre as tartarugas de corrida. Qualquer googleada inconsequente trará informações as mais variadas sobre isso (acompanhadas, em igual número, de fake news que esses são os sinais dos tempos). Informações para todos os gostos, inclusive e principalmente listando os tipos mais apropriados para uma tal competição.
O que queremos agora é relembrar a celebração do Thio quando conquistou o grau de mestre, merecido sim, pois não só a tartaruga que ele treinou foi, em sua primeira corrida, a real vencedora, deixando muito para trás inúmeros mestres que almejavam o posto superior. Tal o impressionante desempenho da tartaruga treinada pelo Thio que os três supremos cogitaram dar-lhe não somente o título de mestre mas promovê-lo diretamente a grão mestre. Ao saber dessa discussão, o Thio fez saber a eles que não merecia tal distinção e, além do mais, para o bem dessa tradição multimilenar não convinha, justo com ele, abrir exceções. Estaria imensamente feliz com o título alcançado pelo resultado da corrida.
          A tartaruga, chamada Esperança, aposentou-se depois dessa famosa e única corrida e ainda viveu conosco alguns anos. Por meio de uma amiga dileta, a Esperança foi parar no imenso apartamento de um solitário jovem onde pode, com suas andanças, procurar a paz que todos buscamos.
          E quanto ao Thio, quando perguntam se ele almeja chegar a grão mestre, ele simplesmente sorri e muda de assunto. A vida é curta demais para tanta ambição, ele diria se não se calasse sobre isso, se seus olhos quase úmidos não revelassem uma pequena mas duradoura decepção...

Lisboa, outubro de 2K18

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

E agora, quem os recolherá?

Dois anos e meio que publiquei o texto abaixo e parece que muito se escureceu desde então (à época, não falei do medo da escuridão naquelas noites no sítio, mas agora bem que caberia). Achei que valia republicá-lo agora.

Soltá-los, pode até ser divertido. Alguns até acham conveniente, a depender das intenções. Mas, quem os recolherá agora que não param de latir e atacar?


Tutti e Frutti (publicado em 28/04/2K16)

Éramos de crianças a jovens e nessa época fomos muitas vezes a um sítio que nossos tios tinham perto de Itu. No começo, muitas vezes, apressadamente que imagens estão até desbotadas. Com o tempo, as lembranças são mais nítidas.
            Lembro do pangaré que havia por lá no princípio e lembro da lição que aprendi com ele, de que nunca teria o controle de minha vida, as coisas aconteceram e aconteceriam como se conduzidas por um pangaré no final da vida, teimoso e preguiçoso. Pois lembro-me de, montado nele, não conseguir de forma alguma fazê-lo ir para onde eu queria. Ele se meteu debaixo da pequena construção que abrigava um poço, queria que queria beber do balde de água que lá estava. E nada de ele me obedecer e eu tive, ao final, que me curvar para não topar com o telhado, tive que me esgueirar para desmontá-lo, quase um tombo. Ele ainda olhou-me de relance com o mesmo olhar que a vida me dá quando me prega dessas peças, quando tento, inutilmente, ter algum controle dela...
            Voltei a pé para a casa principal do sítio mastigando minhas frustrações.
            Lembro da água fervente na máquina de moer cana, uma coleção invejável de insetos fugindo de suas entranhas. A farra para se fazer a garapa sagrada de todo final de semana.
            Lembro da roldana que o primo mais velho instalou em uma árvore alta para brincarmos de gangorra.
            Lembro da jabuticabeira, do lençol branco embaixo dela, da sacudidela com força e da chuva de jabuticabas. E de comê-las até enjoar.
            Das mangas, rosa e espada, que, na sobra, eram vendidas para os passantes da estrada, pura diversão no final do dia.
            Das pinturas de minha tia, das caixinhas marcadas delicadamente a fogo e que a todos, primos incluídos, éramos permitidos experimentar.
            E lembro da Tutti e da Frutti, duas cadelinhas da cidade deslumbradas com aquela imensidão que lhes parecia o sítio de Itu. Uma de cada uma de nossas tias, a Frutti era um pouco maior do que a Tutti. E nem me perguntem a raça, sou ignóbil nisso também, cachorros para mim são divididos em pequenos, médios ou grandes, pelos curtos ou longos, ranzinzas ou tranquilos...
            A Tutti e a Frutti eram pequenas, pelos curtos marrons e tranquilas. Isto é, tranquilas a menos que não vissem alguma das galinhas que se achavam no direito de desfilar livremente pelo sítio. Por isso, a Tutti e a Frutti ficavam presas quando estavam de visita por lá.
            Lembro, e isso era frequente, de uma delas, alternadamente a Tutti ou a Frutti, saindo correndo inesperadamente atrás de uma galinha que, afoita e desesperada, tentava fazer o que sonham todas elas, voar.
            Mas a Tutti, ou seria a Frutti, não estava amarrada? perguntavam os adultos. E a correria não parava com a Frutti, ou seria a Tutti, latindo e percorrendo os caminhos afoitos já percorridos pela galinha. Iam agora, atrás da Tutti, ou seria a Frutti, alguns adultos preocupados com a saúde do galináceo e, é claro, atrás de todos, os primos fazendo alvoroço e aumentando os decibéis da confusão.
            Tudo terminava com a Frutti, ou seria a Tutti, espumando penas de galinhas, olhar satisfeito, no colo da tia, com a galinha ofegante à beira de um ataque cardíaco e com todos se perguntando quem teria soltado a Tutti, ou seria a Frutti...
            Sobrevivíamos todos ao final, talvez com um pequeno trauma para a galinha da vez, nada que muito durasse. Não me lembro de vez alguma em que a galinha não tenha sobrevivido a isso. Não sobreviveriam, porém,  por razões, digamos, mais culinárias.
            Todos sabíamos qual dos primos era o rebelde responsável pela libertação da Tutti-Frutti, mas nunca o vimos ser repreendido. Essa correria fazia parte de nosso final de semana, assim como a garapa, a gangorra e a manga, idílio naqueles tempos em que no sítio não entravam todas aquelas sombras que tanto assustavam o país. A gente se isolava do mundo para comungar alegrias e família. E os primos, éramos de crianças a jovens.

            Lembrei-me disso outro dia. Tempos distintos, parece que porteira alguma de sítio nos protege mais, lugares idílicos já não deveriam esconder o que se passa ao nosso redor. Lembrei-me disso ao ver tantos pitbulls sendo soltos por aí, espumando de ódio a perseguirem os incautos. E agora me pergunto, quem é que irá recolhê-los ao final?

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Thio Therezo em Óbidos


          Se há algo no Thio Therezo que eu realmente gosto é a sua preocupação em estar sempre presente nos momentos especiais. Final de semana lá estava ele em Óbidos para me prestigiar na Fólio. Foi um convite em cima da hora, pois só de última hora os organizadores do Colóquio de Literatura e Matemática souberam que eu estaria por perto. Muito gentis da parte deles me encaixarem entre duas falas. Decidimos que seria mais para uma conversa do que outra coisa, falar um pouco sobre minha experiência em Literatura e em Matemática, dois caminhos que tenho trilhado há um certo tempo.
Dois caminhos que o Thio conhece tão bem... Não que o Thio seja um profissional da matemática, mesmo assim ele me surpreende com a sua visão crítica e filosófica e frequentemente me põe em xeque-mate com as suas opiniões. E, de Literatura, ele se diz um mero contador de estórias, quem diria.
Chegamos de véspera lá e eu, em um daqueles momentos de silêncio, tentei puxar assunto perguntando se ele já conhecia Óbidos. Mal terminei minha pergunta e vi que ela era uma total idiotice. O Thio, olhar que conheço tão bem, sorriu e respondeu que sim, que já tinha vindo algumas vezes, sim...
E contou-me que muito mudara desde a primeira vez em que lá estivera. Nada dessa fila interminável de orientais tirando selfies, nada de ginja a cada dois passos ou de espadas medievais de madeira em cada esquina, nada de autor de novela dono de pousada no centro da cidade. Mas sim, havia o famoso queijo de Óbidos, feito do famoso leite de Óbidos, vindo das famosas vaquinhas de Óbidos. O queijo que comemos no café da manhã e que ninguém quis dizer onde poderíamos comprar mais. O Thio contou que, naquela imprecisa primeira vez em que esteve por lá, podia-se andar sem atropelos pela cidade, só o pessoal local, simpático e tagarela, e, de estranho, cruzava-se no máximo com uma ou duas vaquinhas, aqui ou talvez acolá.
Hoje, ao olhar à nossa volta, é difícil imaginar um outro cenário naquela charmosa cidade que não fosse esse atropelo todo de cidade grande.
Não posso deixar de mostrar algumas fotos de minha fala em Óbidos e um por do sol numa praia lá pertinho, pouco além da Lagoa de Óbidos. O Thio, sabemos todos, odeia aparecer em fotos, mas algum dia eu ainda consigo uma.