e já o jantar a preço módico chegava
ao estágio final da sobremesa e todos ouviram o indefectível par de toques no
microfone anunciando um palestrante. estavam todos ali para isso, não? ouvir.
(o que não ouviram foram as portas do grande
salão sendo trancadas a chaves)
e já então todos viram o palestrante
subir ao pequeno palco, sério que só.
(o que não notaram foram os
brutamontes vestidos de terno preto escondendo suas tornozeleiras)
e já então, todos escutaram.
- iba áles a todos...
- iba áles - uníssono de resposta.
(o que não ouviram, então ou antes,
foram as vozes sensatas dizendo para fugirem de lá a tempo, o que agora se
tornava impossível)
- todos somos culpados - a voz do
palestrante era bem audível - todos, uns mais que outros, alguns
comprovadamente culpados, outros, só por conta de nossas supremas e infalíveis convicções.
(mas ninguém sentia-se culpado)
- até eu... até eu... até eu... - e
ele repetiu tantas vezes quantas necessárias para que as pessoas percebessem
que era uma piada.
(e nessas horas e circunstâncias,
melhor rir)
- ... mas eu, eu me perdôo!
(melhor gargalhar agora, e o barulho
vai abafar o resto da frase, algo como “assim como perdôo alguns outros... “)
- eu sei que vocês querem aplacar suas
culpas, todos queremos. e nada melhor que o que irei propor nesse momento.
(quanto custa?)
- vamos fazer uma fundação de combate
à corrupção. uma fundação gerida pessoalmente por mim para evitar tentações de
outrem. uma fundação cujo objetivo será divulgar o nosso projeto de combate à
corrupção. uma fundação em que eu irei escolher pessoalmente todos os
palestrantes que irão divulgar nossas ideias de combate à corrupção. uma
fundação intransigentemente contra a corrupção, essa mesma na qual vocês estão todos
envolvidos, ninguém é inocente...
(quanto custará, ainda a pergunta)
- nem eu...
(risadas nervosas, ele era um
comediante)
- e uma tal fundação custa dinheiro.
ou vocês acham que essas palestras, bem intencionadas que são...
(algum distraído deu risada da piada e
logo percebeu a gafe)
- ... bem intencionadas que são, essas
palestras custam dinheiro, estadias, viagens, preparação de powerpoint, um bom
número de assessores e os cachês... e os cachês principalmente... até uma
fundação sem fins lucrativos custa os olhos da cara...
(já tinha gente refazendo contas,
desesperado)
- e ainda bem que cada um de vocês
conseguiu economizar um dinheirinho público para esses momentos! imagina...
imagina... que se vocês tivessem que devolver esse dinheiro ao estado... do que
serviria? do quê?
(silêncio e prudência)
- só serviria para alimentar mais
corruptos.
(as contas ficando altas, nunca uma
fundação de combate à corrupção custou tanto dinheiro público desviado)
- para evitar isso, a fundação. para
um melhor aproveitamento do dinheiro desviado, a fundação por mim gerida. a
fundação de combate à corrupção. pois bem, um depósito generoso e o
preenchimento daquela ficha indicando nominalmente seus inimigos e vocês
poderão sair daqui diretamente para casa.
e mais esse jantar foi um sucesso, a fundação
garantida e a maioria dos presentes dormiu no conforto da casa naquela noite.
alguns ainda portaram, ao sair, tornozeleiras eletrônicas, para deleite da mídia
e das redes sociais, mas teve até alguns casos, de pessoas estranhas ao meio
(que estariam fazendo lá?), que foram cumprir alguns anos de prisão sem piedade.
dia seguinte, nova fase da operação higienista levou à cadeia outra leva de
delatados.
não todos, há aqueles cujos crimes já
prescreveram e andam por aí sorrindo, nem cadeia nem necessidade de
contribuição, quem sabe até apareçam com destaque na lista dos palestrantes.
quem há de culpar o tempo que insiste em passar nesses casos?