quinta-feira, 21 de março de 2019

alucinações, parte II


Sua filha nos viu, sei agora, convenço-me. Mas como provar que ela não viu só para nos despreocuparmos disto? Mas quem está preocupado? Você talvez não, você que costuma masturbar o seu filho pequeno quando ele pede, que dormiu com uma amiga quando seu marido estava viajando, ele estava sempre viajando ou era apenas impressão minha?  E naquele dia o seu vizinho de andar, eu no caso, sobrou.

Mas com calma, você dormiu com ela antes ou depois de mim? Ou dormimos os três juntos? Não, isso foi o sonho, o sonho de tempos depois, ou no princípio de tudo. Mas seguramente a porta do corredor estava aberta quando eu saí da cozinha escondendo a calça borrada (estava fechada antes? ouvi alguém abrindo a porta enquanto gozava, ou foi apenas mais uma de minhas alucinações?).  Estávamos por demais compenetrados em nós mesmos, eu tinha ido só te visitar, alguma coisa relacionada com tua dissertação de História, que eu tampouco sei, era desculpa sim, o caos de nossa relação se baseava em desculpas esfarrapadas. Você me apresentando sua amiga em seu quarto, ela deitada acompanhada da máquina de escrever (a estória é antiga, ou foi mais um truque de minha mente). Vocês iam escrever um trabalho para a faculdade, disse-me, mas o olhar da amiga denunciou que não era nada disso. Quem se importa?

Essa estória da amiga foi antes ou depois do amor rápido (como sempre com a gente, sempre batemos recordes absurdos de velocidade), ainda de roupa, na cozinha com seus dois filhos dormindo por detrás da porta do corredor. Sua amiga já tinha ido? Ou também dormia no quarto? Ou não foi no mesmo dia? Foi isso, foi bem depois. Ou bem antes, vai saber.

Ela nos viu? Estou falando da filha agora. Nunca mais conversamos sobre isto, você nunca me falou, nem sequer pareceu preocupada. Ou será que conversamos ao menos depois daquele que talvez tenha sido a nosso mais rápido amor?

Foi quando você se mudou do prédio.  Não, fui que me mudei de lá, tempos depois fui atrás de você e você ainda morava lá.  Foi isso mesmo? Apesar disso, não me lembro mais de termos nos amado depois daquela vez. Ou, tão rápido que foi que até esquecemos?

Será que foi quando fui dizer a você que ainda uso a maleta que ganhei de você? Que ainda a tenho? Ou estou alucinando? Sim, foi você que me deu, inesperadamente. Sim, foi logo depois daquele dia em que nos cruzamos no elevador e você fez uma parada rápida no meu apartamento. Nem deu tempo de ir ao quarto, lembra? Foi na primeira metade da sala mal mobiliada mesmo, no chão, sempre me impressionou a rapidez que você conseguia gozar, aquele gozo eufórico e alucinante. Gozava como se mais nada tivesse valor e desaparecia em seguida de minha vida. Foi assim? Ou sonho? Ou alucino? Ou tento apenas confirmar a teoria daquele matemático?

Você sempre por cima, lembra? Assim você se safava mais rápido depois do gozo selvagem mas ligeiro.

Sonhos? Alucinações? Caos? Ordem? Sei lá, sei lá se você sequer existe. Mas a maleta 007 existe sim, toda embolorada agora que eu a olho, por que eu nunca a joguei fora? Ela sim me confunde, o que veio primeiro? Você ou o apartamento? Você ou o olho mágico em que vi a estudante de História? A mãe da menina que me atropelou, no bom sentido, na cozinha escura? A maleta ou a amiga? A máquina de escrever ou o elevador? O marido que nunca aparecia ou os filhos, o que aconteceu primeiro? Os amores rápidos ou isso é só minha imaginação?

Que coisa! Eu me lembro agora da cama quebrada, o amor rápido e repentino que fez desabar a cama, uma das duas que eu já quebrei em minha caótica vida. Ou foram mais? É engraçado, só perde a graça quando se tem que explicar para a namorada sobre isto... Mas eu estava sozinho à época de seu empurrão sobre a minha cama frágil, você trepando em mim, sempre assim, o barulho e as risadas, mas principalmente a pressa que isso era a constante em nosso relacionamento. Sim, a namorada foi depois, não precisei explicar nada a ninguém, quer dizer, só precisei fazer da segunda vez que a cama, outra cama, outro momento, outra pessoa, essa mais calma, se quebrou em um amor cheio de saudades e foi complicado explicar. Ou não? Talvez não, talvez ela ainda nem saiba o que aconteceu, depois de tanto tempo. Melhor assim.

O caos tem a sua ordem, sabe-se lá.    




Aproveito para fazer um merchan... No próximo dia 23 de março, em Belo Horizonte, será lançada a Coleção 32, publicada pela Sangre Editorial. Os livros dessa coleção, todos com 32 páginas, são produzidos artesanalmente e numerados. Fico contente em fazer parte dessa coleção com o meu livro "as nuvens amortecem a queda". 

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