quinta-feira, 28 de março de 2019

iba áles, sete


          e já o jantar a preço módico chegava ao estágio final da sobremesa e todos ouviram o indefectível par de toques no microfone anunciando um palestrante. estavam todos ali para isso, não? ouvir.
          (o que não ouviram foram as portas do grande salão sendo trancadas a chaves)
          e já então todos viram o palestrante subir ao pequeno palco, sério que só.
          (o que não notaram foram os brutamontes vestidos de terno preto escondendo suas tornozeleiras)
          e já então, todos escutaram.
          - iba áles a todos...
          - iba áles - uníssono de resposta.
          (o que não ouviram, então ou antes, foram as vozes sensatas dizendo para fugirem de lá a tempo, o que agora se tornava impossível)
          - todos somos culpados - a voz do palestrante era bem audível - todos, uns mais que outros, alguns comprovadamente culpados, outros, só por conta de nossas supremas e infalíveis convicções.
          (mas ninguém sentia-se culpado)
          - até eu... até eu... até eu... - e ele repetiu tantas vezes quantas necessárias para que as pessoas percebessem que era uma piada.
          (e nessas horas e circunstâncias, melhor rir)
          - ... mas eu, eu me perdôo!
          (melhor gargalhar agora, e o barulho vai abafar o resto da frase, algo como “assim como perdôo alguns outros... “)
          - eu sei que vocês querem aplacar suas culpas, todos queremos. e nada melhor que o que irei propor nesse momento.
          (quanto custa?)
          - vamos fazer uma fundação de combate à corrupção. uma fundação gerida pessoalmente por mim para evitar tentações de outrem. uma fundação cujo objetivo será divulgar o nosso projeto de combate à corrupção. uma fundação em que eu irei escolher pessoalmente todos os palestrantes que irão divulgar nossas ideias de combate à corrupção. uma fundação intransigentemente contra a corrupção, essa mesma na qual vocês estão todos envolvidos, ninguém é inocente...
          (quanto custará, ainda a pergunta)
          - nem eu...
          (risadas nervosas, ele era um comediante)
          - e uma tal fundação custa dinheiro. ou vocês acham que essas palestras, bem intencionadas que são...
          (algum distraído deu risada da piada e logo percebeu a gafe)
          - ... bem intencionadas que são, essas palestras custam dinheiro, estadias, viagens, preparação de powerpoint, um bom número de assessores e os cachês... e os cachês principalmente... até uma fundação sem fins lucrativos custa os olhos da cara...
          (já tinha gente refazendo contas, desesperado)
          - e ainda bem que cada um de vocês conseguiu economizar um dinheirinho público para esses momentos! imagina... imagina... que se vocês tivessem que devolver esse dinheiro ao estado... do que serviria? do quê?
          (silêncio e prudência)
          - só serviria para alimentar mais corruptos.
          (as contas ficando altas, nunca uma fundação de combate à corrupção custou tanto dinheiro público desviado)
          - para evitar isso, a fundação. para um melhor aproveitamento do dinheiro desviado, a fundação por mim gerida. a fundação de combate à corrupção. pois bem, um depósito generoso e o preenchimento daquela ficha indicando nominalmente seus inimigos e vocês poderão sair daqui diretamente para casa.
          e mais esse jantar foi um sucesso, a fundação garantida e a maioria dos presentes dormiu no conforto da casa naquela noite. alguns ainda portaram, ao sair, tornozeleiras eletrônicas, para deleite da mídia e das redes sociais, mas teve até alguns casos, de pessoas estranhas ao meio (que estariam fazendo lá?), que foram cumprir alguns anos de prisão sem piedade. dia seguinte, nova fase da operação higienista levou à cadeia outra leva de delatados.
          não todos, há aqueles cujos crimes já prescreveram e andam por aí sorrindo, nem cadeia nem necessidade de contribuição, quem sabe até apareçam com destaque na lista dos palestrantes. quem há de culpar o tempo que insiste em passar nesses casos?


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