quinta-feira, 18 de abril de 2019

O sanduíche de múfala com meléia



          Outro dia mesmo, o Thio Therezo voltou da República de Hygina cheio de notícias e preocupado.
          - Crianças, já tem gente lá confundindo Notre Dame com Nostradamus... - foi o que disse ao chegar em casa e logo emendou que tinha fome, afinal só tinha comido um filé a cavalo vegano no aeroporto (era a sua maneira de dizer que nada comera...).
          Minha mãe, sua irmã, preparou-lhe então um de seus lanches favoritos. Um sanduíche especial de múfala com cebolas roxas e veios dourados de meléia, o que lhe dava aquele sabor agridoce inconfundível e inesquecível.
          Duas mordidas foram suficientes para reestabelecer temporariamente a calma ao ativo Thio Therezo. A preocupação e a vontade de compartilhar as notícias recentes restaram, porém, presentes.
          Contou-nos da reestruturação do sistema judicial daquela República. Contou-nos de como certos procedimentos foram sendo testados nos últimos anos nos ITLs. Para quem não sabe o que são, como é bem o nosso caso, sobrinhos desatentos que somos, ITL significa Ínfimo Tribunal Local (na versão mais debochada, os tribunais de esquina).
          Prisões para averiguação, delações impostas, condenações por convicção foram alguns dos experimentos conduzidos à luz do dia, para deleite de muitos. Alianças estratégicas com outros setores da sociedade civil ajudaram para alcançarem o total êxito da missão encomendada, êxito que eleição alguma teve em tempos recentes.
          Mas o experimento que mais chamou a atenção dos superiores dos ínfimos foi o que parecia a princípio ser um mero detalhe: a bem sucedida junção no mesmo operador jurídico das funções de acusador e de juiz, o que trazia não só agilidade nos processos como também uma suposta coerência jurídica nos resultados.
          Nada mais natural, então, que os superiores dos ínfimos, que já vinham assumindo funções legislativas e policiais naquela distante república, resolvesse simplificar os seus procedimentos a partir desses experimentos.
          O Thio nessa hora parou a narrativa para lamber a meléia que ficara grudada nos dedos (quem come aquele sanduíche sem se lambuzar um pouco que seja não sabe o que está perdendo...).
          Como setores inoportunos da sociedade civil estavam questionando o primeiro mandamento higienista (“não julgarás os julgadores”), era preciso fazer algo e rápido, concluíram os superiores dos ínfimos. Nada melhor então que simplificar ao máximo os procedimentos legais: o denunciante, o investigador, o acusador, o julgador e o executor da pena devem ser a mesma pessoa para que haja agilidade e coerência jurídica no processo. Recursos, por exemplo, são avaliados pela mesma pessoa que proferiu a pena, quem melhor para tal?
          E para quem discordar, há sempre a patrulha higienista para limpar as arestas.
          Quanto ao lanche, o Thio foi presenteado com um novo sanduíche ao final de sua narrativa, esse bem mais caprichado. Ele merecia, todos merecemos um cafuné extra nessas horas, nesses tempos tão difíceis...

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