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Para atiçar a curiosidade, transcrevo aqui dois textos sobre "outros tantos". O primeiro é da escritora Isabela Noronha que muito gentilmente escreveu essa orelha para o livro e o segundo é parte de uma resenha escrita pelo escritor e crítico literário Krishnamurti Góes dos Anjos (a resenha completa pode ser encontrada aqui).
Leveza, rapidez, exatidão,
visibilidade, multiplicidade, consistência: são esses os grandes valores literários,
aqueles que merecem ser preservados, definiu Italo Calvino, um dos maiores
escritores italianos. Não a toa, cada um deles dá titulo às seções deste livro. Os contos de Flavio Ulhoa
Coelho são um mergulho nessas virtudes. Começamos com a leveza
– despojamento e sutileza, tanto de linguagem quanto de estrutura – e não estamos
mais abandonados. É
na companhia dela que viajamos dentro do bonde 53 não para um
lugar, mas para outro tempo – um em que cabem desejo, café recém-passado
e pão quentinho. Passamos por olhares flutuantes, sofremos, nos
reencontramos nos olhares futurantes e somos lembrados de que, encontro ou
desencontro, só o final, essa mínima parte, muda. É também uma celebração da leveza o
humor de Negro y Blanco em que tudo está posto, porém ainda
assim o mistério persiste –
um convite à imaginação do leitor, convite esse que perpassa todo o
livro. Está no absurdo do homem que carrega uma maleta cheia de dedos em uma “missão secreta” em O
carregador de dedos, na saudade rubra e triste de Natal, vermelho,
na mudança de ponto de vista em Adocão, na dolorida homenagem ao pai em Nove de Julho. É contando
com um leitor ativo, inteligente, que essas histórias se realizam.
E, mais que oferecerem respostas, se abrem em um diálogo com a reflexão de
Calvino: "Quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma
combinatória de experiências,
de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma
biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser
completamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis."
Isabela Noronha, escritora e professora
da pós-graduação Formação de
Escritores do
Instituto Vera Cruz, em São Paulo
A publicação de “outros tantos” do escritor Flávio Ulhoa Coelho,
reúne 32 contos (alguns com estrutura de crônica), agrupados em 6 partes sob os
títulos que foram tão caros à Italo Calvino: Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade,
Multiplicidade e Consistência. E o que o leitor encontra é em evidente exemplo
de criatividade. Parece-nos que tal divisão é meramente esquemática, intuitiva,
sem ligações rígidas com o pensamento de Calvino, diríamos mesmo que constituem
um flexível exercício em torno daquelas ideias do escritor italiano, que são
atualizadas e, em certo sentido, aprofundadas.
Em alguns textos observamos a nítida opção pelo fragmentário de
vidas ou situações que se entrelaçam, em circunstâncias existenciais complexas
de que o olhar eventual de um observador não daria conta. O olhar do
ficcionista recolhe “traços” e apresenta reflexões que não possuem a intenção
de organizar, mostrando que a composição do real se revela no fragmento. Ver:
“E nós quem somos?”, “negro y blanco”, e “A árvore darwiniana”. Há contos onde a imaginação atua como
alavanca de procedimentos lógicos. E entra em cena uma dialética entre
imaginação e realidade, com resultados realmente surpreendentes como acontece
no excepcional, ”Ela, a ideia”, uma verdadeira aula de como o escritor lida com
sua imaginação criadora.
Há ainda no autor dessa obra, uma faceta muito interessante. A
partir de um enredo básico de um conto, ele escreve outro com uma abertura
para: “e se fosse diferente o curso daquela história?”. A possibilidade vem em
outro texto, e de uma forma muito sutil, não diretamente implícita, um mero
detalhe muda a trajetória de vidas. Os exemplos mais evidentes são “Olhares
flutuantes” e “Olhares futurantes” de um lado, e mantendo essa característica
de variação de desfecho, mas aprofundando sentidos, temos “Os momentos mais
eternos” e “Conto de natal”. Como são textos muito bem trabalhados no nível da
construção ficcional, perduram na memória do leitor e, quando este lê o outro
texto, percebe claramente que emergem detalhes e circunstancias já ventiladas,
mas com uma iluminação mais intensa. Habilidade típica do contista que domina
plenamente a sua ficção em toda e qualquer direção que entenda dar-lhe.
Em outras narrativas encontramos profundas reflexões sobre a monstruosa
realidade social brasileira como acontece em “O carregador de dedos” e “Um par
de tiros”. Profundas reflexões porque, mais importante do que a mera reprodução
de situações, o autor põe o dedo na ferida exposta. Na ferida aberta da
corrupção sistêmica que assola o país, que muitos adotam e até defendem, como
lemos no primeiro conto, ou o porque de nossa juventude negra e pobre (via de
regra), estar sendo sistematicamente exterminada por aqueles que representam o
Estado, ou deveriam representar. E não somente a triste realidade atual, o
autor visita o tempo um pouco mais recuado. Veja-se o conto “A rua”, pungente
relato sobre a vida de uma mulher corajosa e engajada politicamente, que é assassinada
durante o escrotíssimo (desculpem mas não encontro outra palavra), regime de
exceção que tivemos no Brasil durante vinte e tantos anos, e que todo mundo
sabe muito bem qual foi. Contos assim,
nos levam a reconhecer, com pesar, com muita dor, que o Estado brasileiro foi mesmo
forjado na violência e na exclusão, e continua desgraçadamente nesse triste
percurso.
Não poderíamos deixar de mencionar finalmente, o doce lirismo que
exala em textos como “Bonde 53”, “mãos
dadas no parque”, “guardanapo”, “achados e perdidos”, “morto no corpo” e “por
ora”. Esses textos, todos, com suas características e circunstancias peculiares
claro, nos fazem lembrar das coisas boas da vida, sim, por incrível que possa
parecer, a vida os tem. E então somos capturados inapelavelmente por sensações
e sentimentos bons quando lemos textos que excitam a memória de tempos idos,
ou a maravilha que é estar apaixonado,
ou ainda a delícia e a dor da entrega impensada. Quem não lembra dos vestígios
daquele amor que poderia ter sido e não foi? Que bem nos faz constatar a
transitoriedade de nossas dores de amor que refluem com o tempo para o mais
completo esquecimento? Que dizer então, da doçura que é sentir-se amado?
E, paralelamente ao que já referimos e, dentro da diversidade dos
temas e formas trabalhados, que dão um sabor todo especial ao livro, salta aos
olhos a elegância e a qualidade literária da prosa. Sem sombra de dúvida
podemos afirmar que “outros tantos” do escritor e professor Flávio Ulhoa Coelho
consegue abrir espaços de interrogação, de meditação e de exame crítico Em
suma, enseja a proveitosa relação com nós mesmos, com o nosso mundo interior
através do mundo que o livro nos abre.
Krishnamurti Góes dos Anjos, escritor e crítico literário.
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