A escritora e crítica literária Alexandra Vieira de Almeida escreveu a resenha abaixo sobre o meu livro "outros tantos". Quem se interessar pode encontrá-lo no site da Editora Penalux (clique aqui) ou na Livraria da Vila.
Há também a possibilidade de se conseguir o livro diretamente comigo. Nesse caso, além do autógrafo, eu envio junto com um brinde: um de meus livros anteriores, dentre "Gambiarra e outros paliativos emocionais" (contos, 2007), "Contos&Vinténs" (contos, 2012) ou "Pigarreios" (romance, 2016), à escolha. Basta me contactar por e-mail: flavioucoelho@gmail.com
A tessitura da escrita em ´Outros tantos`, de Flávio Ulhoa Coelho
Flávio Ulhoa Coelho reúne 32 contos no seu novo livro Outros tantos
(Penalux, 2019), retomando as seis proposições de Italo Calvino no seu livro
Seis propostas para o próximo milênio, que não chegou a completar com a sexta
parte inconclusa. Os títulos das partes do livro de Ulhoa são os mesmos que
compõem as propostas de Calvino. São elas: Leveza, Rapidez, Exatidão,
Visibilidade, Multiplicidade e Consistência. Mas o escritor aqui em questão,
professor de Matemática, adequa tais temas imprescindíveis à excelente
literatura a ser produzida a partir do viés original do tempo.
Logo no primeiro conto, “Olhares flutuantes”, temos o fator ritmo e
sonoridade como alicerces para a construção do tempo na medida certa. Tempo de
encontros e desencontros nos olhares do ser universal, pois Ulhoa não se prende
a regionalismos e particularidades, mas ao tema oniabarcante do que constrói os
apelos do mundo em toda sua liquidez e fragilidade. Ele escreve: “Futurando o
presente, os olhares se fixarão por uma efêmera eternidade”. Eis a intensidade
deste paradoxo, que une a transitoriedade ao atemporal. Que magnífica a força
dos opostos e contrastes aqui, revelando o mundo como algo que engloba o poder
ambíguo do tempo, que ora corre com rapidez e efemeridade, ora aponta para um
processo de sublimidade que se encontra no perene jogo do que ultrapassa o real
em toda sua fragmentação. Esses olhares que se encontram “flutuando” e
“futurando” buscam uma ambivalência no tempo cronológico e psicológico, já que
seu livro de contos dá a medida que encerra a potência sobre o visível, a carne
prosaica, à invisibilidade de um lirismo abismal.
No conto “Bonde 53”, temos o valor da amizade sendo exaltado, apesar das
divergências. Utilizando verbos no futuro, o narrador, magicamente, vai
construindo hipóteses, um futuro que aponta para o passado e para o presente, reunindo-os.
Assim, ele vai cerzindo esses tempos com um olhar futurístico, que nos
direciona para o abismo do desconhecido e oculto aos olhos simplórios. Sua
escrita tem a profundidade cortante que une a leveza do ritmo poético às
reflexões críticas e sociais indomesticáveis. Como um tropel de cavalos, sua
escrita se adensa nos véus das palavras, cristalinas, mas que escondem sombras
no seu interior, a partir de imagens ricas e precisas, revelando sua exatidão
matemática e o que vai além dela, pois que não pode ser medida. O poeta do
futuro, aqui, utiliza o ritmo e a repetição poética, dando poeticidade à sua
narrativa, aliando a poesia e a prosa, como os grandiosos escritores universais
Clarice Lispector e Guimarães Rosa. O lirismo contido nas asas de suas páginas
nos dá o valor inusitado em meio à claridade prosaica: “...os olhares que se
perderam nas nuvens dos dias”.
Em “Negro y blanco”, temos os diálogos como base principal do conto, com
seus discursos diretos sendo reconfigurados pelo poder da linguagem. O narrador
mistura as línguas espanhola e portuguesa de forma magistral, dialogando com o
titubeio do narrador que não domina de todo a língua da Espanha. Num mosaico de
línguas, o narrador tece uma rede de palavras, mesclando frases em português e
espanhol, dando inventividade e jogo linguístico, que faz de seu conto algo que
atinge o cosmopolitismo tão caro aos valores que ultrapassam a cor local. Aqui,
temos a totalidade do instante na memória. Um processo de experimentação do
texto ocorre de forma exemplar, e a dupla chama da linguagem acende o sol vasto
da literatura.
Em “Mãos dadas no parque”, Ulhoa tenta conter as certezas num mundo de
incertezas, através de afirmações. Questionando no início do conto se o que
veio primeiro foi a carta ou o telefonema da amiga do passado do narrador, ele
pretende conter a memória do tempo numa solidez afirmativa da linguagem, clara,
objetiva e precisa. Nesse processo de exatidão, temos a contenção da língua,
fazendo surgir o dique que poderá conter a imprecisão e inexatidão do
transbordante esquecimento. Temos assim, um jogo matemático que, ao mesmo
tempo, ultrapassa a lógica a partir do que é imaginativo. A força do imaginário
e da fabulação em Ulhoa é incrível, dando um tom forte à sua escrita
excepcional e criativa. Com a imprecisão da vida, não podemos encaixar tudo
numa caixinha sistêmica, o autor sugere. Como dizia Fernando Pessoa, retomando
os navegantes: “Navegar é preciso, viver não é preciso”. Nesse conto se dá a
lembrança intensa em meio ao esquecimento da memória falha, que tem suas
margens de erro.
Italo Calvino escreveu em seu livro por ora aqui apresentado
anteriormente: “Minhas reflexões sempre me levaram a considerar a literatura
como universal, sem distinções de língua e caráter nacional, e a considerar o
passado em função do futuro; assim farei também nessas aulas”. Aqui, numa
figuração espaço-temporal, temos a construção do texto através de um jogo que
não segue convenções linguísticas e temporais, ao mesclar os tempos numa
abertura para o novo e original. No conto “Olhares futurantes”, Ulhoa retoma o
conto inicial com nova roupagem, dando-lhe um novo final, reconstruindo e
reconfigurando o mesmo a partir da diferença. Assim, é pela repetição e também
pela diferença, que Ulhoa constrói o seu livro, pleno de espelhamentos no
labirinto inusitado da poesia que pela musicalidade nos direciona para as águas
mágicas dos sentidos narcísicos, com o reflexo e reflexões, como na dobra em
espiral e não em círculo, num eterno retorno da diferença imagética. Em meio
aos refrãos narrativos, Ulhoa consegue a difícil proeza de reunir num mesmo
respiro o caos e a ordem, o transbordamento e a contenção. Num caminho sinuoso
e íngreme, encontramos suas narrativas como jogos de linguagem bem precisos em
seu corte afiado e afinado.
No conto magistral, “Caneta com tinta preta”, temos a exatidão da
linguagem com o inusitado das imagens. A precisão do detalhe, “meu único
irmão”, se casa com o lirismo da força imaginária, que denota uma rasura em
meio à matematização da escrita. Ulhoa rompe o círculo perfeito pela poesia. Em
“a velha caneta tinteiro do pai”, encontramos uma metáfora para a escrita. O
interesse por esse objeto faz da linguagem o tiro certeiro do literário, cuja
morada se encontra nas palavras abissais que se adensam na tinta preta. Temos,
assim, as imagens do afeto, do elo familiar e literário.
No conto “O carregador de dedos”, podemos perceber a exatidão do tempo a
controlar o trabalho dos funcionários. Aqui, temos a crítica social do chefe da
empresa que reclama dos impostos e da corrupção. No meio da sociedade, temos o
controle, tentando domar o tempo. A exatidão do controle, por outro lado, borra
tudo, pois através de um fato não previsto o controle se desmancha no ar. Um
fator inusitado desnorteia a exatidão do controle, nocauteando-a. Em “A árvore
darwiniana”, assim como em outros contos, com a forma semelhante, temos o
trabalho de experimentação com a linguagem, pois a narrativa, escrita com
frases descontínuas, dão o valor poético ao texto. Os diálogos são
entrecortados, a partir da união entre forma e conteúdo.
No conto “Natal vermelho”, encontramos um labirinto de espelhos a partir
dos desdobramentos da cor vermelha e seus significados que explodem para todos
os lados das entradas e saídas. Aqui, vemos o contraste entre a data festiva,
que significa nascimento, com a morte, em que temos o trágico em meio à beleza
e ostentação do núcleo festivo. Um excesso da cor se traduz num simbolismo
perfeito. As imagens da repetição do vermelho se conjugam com o ritmo
poético.
Estes elementos são retomados em “Conto de Natal”, onde a repetição e a
rotina são enaltecidas e desviadas pela memória do passado, o tempo em máxima
efusão das horas. Temos a mesma história, tudo se repete na fase natalina, pois
é a fase de rememoração do personagem. A rotina fere o escudo da liberdade,
trazendo o aprisionamento e contenção do que transborda naturalmente. A festa
natalina é o leitmotiv para a viagem memorialística da personagem. Ao fugir da
rotina presente, ele se depara com o passado com suas diferenças e encantos:
“Parecem dias tão distantes que mal as sinto no meu cotidiano atual”. Ele evoca
esse “período rubro” como “melancolia vermelha”, que devassa o tempo,
cortando-lhe os pulsos. E essas lembranças não cortariam o momento repetitivo da
festividade? O passado não quebraria a rotina do momento presente, revelando o
frescor da origem? Certas coisas do passado causam-lhe incômodos. A imagem do
cemitério e dos túmulos são fantasmas, a falta de pessoas que já partiram. O
lirismo do conto é encantador: “Definitivamente, o Natal é vermelho, em meus
olhos de todos os dezembros”.
No conto social “Rua”, relembrando nosso período de sombra que ainda nos
assola, a ditadura militar, temos a morte covarde da personagem amada do
narrador-personagem. Num jogo de simetria e dessimetria, a rua vai ganhando
contornos simbólicos e metafóricos ao longo desse conto admirável por sua
beleza em meio o caos social e político. Ele diz: “...tanta gente desaparecida
naqueles tempos de sombra”. Saindo do político-social e adentrando o
especificamente literário, temos em “Ela, a ideia”, um verdadeiro estudo sobre
o fazer poético. As ideias são personificadas e metaforizadas, ganhando um
sentido alegórico. O trabalho literário é de busca, de procura das ideias, que
se escondem de nós. Podemos nos lembrar aqui de um Drummond, com sua luta pelas
palavras, ou um Gullar, com sua “luta corporal”, onde a ideia surge a partir de
uma guerra, de um esforço descomunal.
Igor Fagundes, grande ensaísta e poeta, professor da UFRJ, retomando
Nietzsche nos fala sobre os elementos dionisíacos e apolíneos. É preciso domar
as palavras para não deixar que elas transbordem no voo e no caos. Elas
precisam ter sentidos, a concretude do pouso, e isso Ulhoa faz magistralmente
na sua escrita. Ele é um domador do tropel dos cavalos, dando-lhes o freio
necessário. O desejo de ultrapassar as medidas é contido pela matematização e
ordenamento das palavras certeiras. A exatidão apolínea se conjuga, dando as
mãos ao jorrar das palavras dionisíacas. Portanto, é a partir de um processo de
seleção e combinação das palavras que tal esquema é possível na obra
maravilhosa deste escritor que encantará o leitor com suas narrativas repletas
de literariedades e realidades, unindo a tessitura literária ao nosso mundo
circundante. Assim, o real e o imaginário se dão as mãos nos seus contos
inventivos e imaginativos, mas que tocam o chão de nossa realidade que não foge
aos ditames de sua escrita inaugural.
SERVIÇO
“Outros tantos”, contos. Autor: Flávio Ulhoa Coelho.. Editora Penalux,
198 págs., R$ 38,00, 2019.
Disponível em:
https://www.editorapenalux.com.br/loja/outros-tantos
E-mail: vendas@editorapenalux.com.br
Sobre a resenhista
Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ.
Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os
primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: “40 poemas” e
“Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci.
Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e
alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro “Dormindo no Verbo”,
pela Editora Penalux.
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