Par de meses
atrás, fomos a Buenos Aires. Fazia um tempo que não a visitava sem compromissos
outros que o de passear por ela, que o de me esquecer no tempo, que o de me
perder em suas ruas e passado. E lá, convenhamos, é possível se fazer isso, se
esquecer do tempo.
Sem pressa,
conto algumas coisas.
Uma delas? Fazia tempo que eu
procurava um bom pincel para fazer a barba (sim, sou daqueles que usa creme de
barbear, pincel e gillette...). Brocha de afeitar, assim aprendi a procurar
por lá.
Em São Paulo, já tinha até desistido
e quis aproveitar que estava em uma cidade como Buenos Aires, certeza de
encontrar. Na realidade, deve até ser possível encontrar um bom pincel de barbear
em algum lugar dessa minha cidade natal, seguramente, mas onde? Cidade dispersa
em que nada tem seu lugar, onde somos (eu, certamente sou) pré-históricos, onde
tudo parece conspirar contra você. As que achei, de fato, eram feitas de pelos
de plásticos, que arranham a pele.
Mas em Buenos Aires, com seu incomparável
ar histórico (principalmente no centro), eu sabia que encontraria um bom pincel
para barbear. E não tardou muito, pergunta aqui e acolá, me indicaram uma loja,
logo ali, duas quadras direto e virando à esquerda, não há como errar.
E lá estava ela, El rey del
Cepillo, especializada em plumeros, escobillones, cepillos de ropa, de cabelo
e, claro, brochas de afeitar.
Entramos na pequena loja como se muda de
dimensão temporal. Uma senhora muito simpática a atender. Na conversa,
contou-nos que ela e o marido tinham aquela loja há muito tempo. Notava-se,
loja simples, mas bem cuidada e suprida, loja especializada que deve ter
mantido o sustento da família em todos aqueles anos. Viajo em meus pensamentos,
imagino os filhos do casal já formados e exercendo profissões diversas, a
primogênita é médica, o do meio virou artista e a caçula, ah essa ainda vai se
achar na vida...
Viúva? pergunto-me. Pelo olhar
saudoso com que ela nos diz a idade da loja tudo me leva a crer que sim. Sim, seu
olhar nos transmite toda uma história desse casal, dessa família e de sua luta,
de seus desafios, de todas as crises vividas e, quem sabe, da fome dos tempos
piores, das esperanças e dos desesperos. E é certo que, mesmo triste, seu olhar
traz a certeza de que ainda há espaço para uma loja artesanal de cepillos no
centro de uma grande cidade como Buenos Aires.
Ela me mostrou todas,
literalmente todas, as brochas de afeitar que tinha à disposição, todas muito parecidas,
mas nunca iguais, nunca o serão é verdade, pelos de animais distintos não podem
produzir o mesmo efeito em sua pele. E ela, consciente disso, passava em sua
pele os pelos macios do pincel antes de me mostrar. Fez isso com todos os pincéis,
abria a caixinha, retirava-o, passava ligeiramente em sua pele e só então eu
teria permissão para testar e ver se gostava.
O que ela pensava enquanto
passava ligeiramente o pincel na pele das costas de sua mão? Nunca saberei, mas
sentia nisso um momento especial dela, uma lembrança, ou várias a depender de
como o pelo alisava sua pele com história, a depender da carícia feita com
lembranças.
Estávamos sem pressa aquele
dia, mas, mesmo que estivéssemos apurados, nada na vida justificaria apressá-la
em seu ritual, naquele momento que era só dela (e de quem mais participasse de
suas memórias). Segundos que fossem, ela parecia se ausentar dali, esquecia
nossa presença ao sentir o pelo alisando sua enrugada pele, o improvável pelo
ativador de memórias.
Cada ruga, uma lembrança, não
é assim que elas surgem? E não é na carícia que elas são reativadas?
Por fim, escolhi o que queria,
depois de conversarmos sobre passados e presentes. Quanto tempo ficamos lá? Nem
foi tanto, no registro do relógio, mas foi muito no da memória.
Dia sim, dia não, faço a minha
barba no ritual de décadas. Mas agora, ao sentir o pincel espalhar a espuma em
meu rosto, sinto a necessidade do tempo parado, do tempo passado e, segundos
apenas, pareço voltar à lojinha e ao olhar da velhinha quando sentia o pelo do
pincel acariciar sua pele ativando lembranças.
Sei que a barba continuará a crescer
e que terei por algum tempo ainda à minha disposição essa rotina, esse momento
especial. Ainda bem.
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