quinta-feira, 30 de julho de 2020

Máscaras

            O corredor agora está cheio de máscaras mas nem sempre foi assim. Quando crianças, quadros de ancestrais e pinturas de artistas de ruas ornamentavam suas paredes e nos atormentavam enquanto, a contragosto de nossos pais, disputávamos corridas de patins, meu irmão e eu. Eufemismo, eu sempre perdia para ele, assim como ainda hoje perco, sempre.

            Hoje, na casa imensa, mas felizmente renovada, só vivemos minha filha adolescente e eu seu pai tardio e solteiro e isso graças às benevolências dos parentes ainda vivos mas que nunca aparecem para nos visitar. Herdeiros como eu, eles, vez ou outra, me recordam de suas participações na casa e no quanto são generosos em me deixarem viver aqui sem pagar aluguel.

            Sorrio de tudo isso e sigo vivendo. Em todo o caso, por precaução, mantenho uma autêntica carranca de metro e meio virada para a porta da rua. Dizem que afugenta os maus espíritos e ajuda na navegação tranquila.

E o corredor, agora, exibe parte de minha expressiva coleção de máscaras, cores, feitios e utilidades os mais variados possíveis.

            A primeira, lembro bem, comprei de uns índios no Peru, naquela viagem maluca que fiz até Machu Picchu. O índio velho e enrugado contou-me a história daquela máscara colorida e com chifres que me chamou a atenção tão logo eu a vi. Algo relacionado a uma antiquíssima festividade religiosa em que os participantes a vestiam para afugentar os maus fluidos e pedir a boa colheita que tanto necessitavam. Era uma máscara até que comum no grande mercado de Cusco mas aquela específica, o índio enrugado garantia, tinha sido usada pelo grande... (não insistam, não conseguiria lembrar ou mesmo repetir tal nome), ancestral de inúmeras décadas, talvez séculos atrás. Por isso, o preço que cobrou, mesmo depois da usual negociação comum naquelas bandas em que os valores caem em geral a um terço do inicial.

            Cobrou caro a primogênita máscara, quase todo o extra que tinha para a viagem foi-se naquela compra, mas eu precisava muito de algo que me recordasse para sempre essa  aventura. Tão logo cheguei ao hotel, ansioso, eu a vesti. O espelho refletiu, e ainda reflete nas vezes em que me atrevo a vesti-la, toda a minha esperança por boas colheitas. Elas ainda virão, tenho a certeza, mesmo me tornado mais e mais descrente a cada dia que vivo.

            Tempos depois, em um desses tais Guias Michelin lá estava a foto de uma máscara igual à que comprei ilustrando a história que ouvi do enrugado índio. Nunca soube se o guia tinha feito também o mesmo trajeto que eu e ouvido esse relato lá no mercado de Cusco ou se foi o índio que conheci que o lera no Michelin.

Tanto faz, na realidade. Nada se cria, tudo se reconta...

O que não tanto faz foi eu contar à minha pequena essa, e outras, histórias que acompanham as tantas máscaras agora pregadas e aparentemente inertes nas paredes da grande casa. Sou um colecionador sim, de máscaras e de suas histórias, encantam-me saber o que há por trás delas e dessa nossa eterna necessidade de ser algo que não se é.

Foi a pequena, porém, que desmascarou (se me permitem o abuso linguístico) meus desejos quanto a essa mania. Depois da enésima máscara que vestia para impressioná-la, ela me disse do alto de seus oito anos de então que eu era um pai diferente a cada máscara vestida.

- Então você tem centenas de pais diferentes – foi o que consegui responder.

- E eu gosto de cada um deles – seus olhinhos brilharam e os meus se umedeceram.

O fato é que depois daquela primogênita máscara peruana envolvi-me em uma busca alucinada e, a cada lugar que visitei e foram tantos por conta das viagens que minha profissão permitia, a cada lugar, exótico ou não, eu procurava em bazares, mercados ou mesmo em lojas para turistas, tudo que pudesse ser uma máscara. Pretendemos sempre ser algo distinto e a máscara nos permite isso, foi o que ouvi de um psicanalista uma vez. Um tanto quanto lugar comum, mas vá lá, serve para o gasto desse inofensivo relato.

Com o tempo, os quadros dos ancestrais e dos pintores de rua foram dando seus lugares às máscaras compradas aqui e ali. Tantas foram que as paredes do longo corredor de casa não foram suficientes e, hoje, elas estão por todas as partes, todos os cômodos, banheiros inclusive, nos observando a cada passo que damos, a cada gesto que insistimos em fazer, trazendo sorte ou não, impingindo suas expectativas positivas ou não, interferindo em nossos cotidianos.

Só de máscaras da fertilidade tenho uma centena e, por alguma razão, foram as que mais atraíram a curiosidade de uma jovem amiga que me visitou um dia. Uma coisa leva a outra e nos amamos aquela noite, vestidos cada um uma correspondente máscara da fertilidade. A dela, vindo do extremo oriente e a minha, asteca.

Não sem razão, a bebê nascida dessa exótica experiência traz em seus genes um misto de características que só se explica por essa combinação, quiçá esdrúxula, no momento de sua concepção.

A diferença de idades entre nós dois, minha amiga e eu, até justifica nossa precoce separação e a menina ficou morando comigo. Mesmo porque, um ano e pouco depois do nascimento, a mãe dela despencou do alto de um prédio junto ao namorado quando tentavam fazer um selfie aventureiro. No dia nublado, nem as nuvens amorteceram a queda dos dois.

Paciência, pude desfrutar do crescimento da pequena em sua plenitude. E, na medida em que ela crescia, fui introduzindo-a às máscaras, muitas das quais infantis, e por que não seriam? A cada dia, a cada tarde de férias passada naquela casa, escolhíamos algumas delas para vestir e brincar, inventar estórias e seguir vivendo nossas fantasias, pretendendo sermos seres distintos, entes imaginários.  E sigo buscando e comprando máscaras por onde passo, agora com novas motivações. Estão sendo sim os melhores anos de minha vida.

            Se pudesse, sairia à rua com uma máscara apropriada a meus sentimentos do dia, uma que combinasse com a maneira que eu gostasse de ser visto naquele dia, e máscaras não faltariam para tal variedade de humor. A cada dia, todos veriam um novo eu, imagem refletida de porcelana, papel ou até mesmo plástico, que variedades não faltam em minha coleção.

            Hoje, eu retornei de mais uma viagem, sempre me prometo que será a última, cansado que estou. Chego em casa escutando o silêncio da solidão e penso que minha pequena deve ter saído. Malas ao chão e ouço um zumbido vindo da sala ao final do corredor, convencendo-me do contrário, ela está sim em casa.

Percorro-o mais uma vez, vigiado por tantas histórias de esperanças penduradas em suas paredes até chegar aonde se encontra a minha adolescente filha. Ela testa um tal de VR, virtual reality. Eu a vejo atrás daqueles óculos que mais parecem um equipamento de mergulho e isso nada diz sobre ela. Ela sim me olha e, em uma realidade transformada, deve ver um pai diferente, moldado agora à sua vontade. Quase que não vejo o seu pequeno sorriso enquanto fico parado à porta. Mas sinto que não faria efeito algum vestir agora qualquer das máscaras que possuo, impossível mascarar minha imagem frente ao que aquele aparelho diz à minha filha.

            Eu me submeto então a essa nova realidade e resigno-me.



[[Escrevi esse conto para a coletânea Ideários organizada pelo poeta português Alvaro Giesta e publicada em 2019. Foi uma alegria participar dela, em ótima companhia literária.]]

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Quatro estrelas


          Algumas semanas atrás, eu mencionei a atuação do Thio Therezo como chef de cozinha e muitos leitores ficaram curiosos sobre os bastidores por trás da história das quatro estrelas que seu restaurante recebeu no Guia Michelin.

          O Thio já era um chef famoso quando isso aconteceu, livros seus de culinária já eram consolidados best sellers da área. Títulos como “As insanas ousadias do senhor cozinheiro e suas cruéis assistentes” ou “Carnificinas e veganismos” não só se tornaram clássicos da auto-ficção, onde parte de sua infância é contada intercalada com receitas inovadoras, como também um legítimo percursor da culinária saudável tão em moda nesses dias confusos. Ambos livros foram ganhadores de prêmios Jabuti e ambos, aliás, ganhadores em três categorias cada (as suas ilustrações, obras primas do próprio Thio, foram consideradas imbatíveis nos anos em que disputaram o prêmio).

Aliás, tantos Jabutis ele ganhou ao longo de sua vida, não só por seus escritos de culinária mas também em inúmeras outras áreas, que ele em um dado momento até criou uma imbatível sopa de Jabuti, carro chefe de um de seus restaurantes por muito tempo. Mas isso é outra história, cá estou eu desviando-me novamente do assunto principal.

Pois bem, a história da quarta estrela do Michelin começou depois do concurso internacional de Comida Minimalista que o Thio ganhou (o famoso IMF- International Minimalist Food Contest). O seu prato, chamado de Repasso Bandeirantes, não só, por decisão unânime, abocanhou (esse é o verbo certo nessas horas) o primeiro prêmio como também fez o maior sucesso ao longo dos anos que a ele se seguiram.

          O prato? Minimalista como requeriam as regras do concurso, o prato consistia de um feijão carioquinha, sim, um grão de feijão, combinado com três grãos de arroz branco, um grama de paçoca de carne e espuma de ovo frito. O diferencial, era só provar para perceber, estava no extravagante e ultra secreto tempero do feijão. Nada de extraordinário quanto ao arroz e mesmo a paçoca era uma simples paçoca bandeirantes, tradicional como o que nossa avó fazia e que mamãe, irmã do Thio, repetia em sua plenitude (coloquei essa receita na semana passada aqui mesmo no blog). Quanto à espuma de ovo frito, uma daquelas usuais provocações do Thio aos grandes chefs espanhóis.

          Havia algo de mágico na disposição dos alimentos no prato. Antes de mais nada, um prato elipsoidal onde o feijão deveria ocupar um de seus focos (o Thio, aliás, mandou um de seus mais diletos discípulos fabricar tais pratos, tendo entregue a ele as medidas entres os focos e os tamanhos de seus eixos, tudo equilibradamente proporcional). Bom, o feijão não deveria ser disposto nesse foco de forma aleatória, deveria repousar lá formando um ângulo de 34,7º com relação ao eixo principal. Os três grãos de arroz têm que estar dispostos de tal forma que aparentassem aleatórios, mas isso se constituía como uma mera ilusão de ótica, pois nada é essencialmente aleatório nesse mundão de deus. Eles deveriam sim, estar dispersos no prato mas de tal sorte que suas distâncias ao feijão mantivessem uma exata proporção áurea. Claro que os arrozes devem todos estar com seus eixos principais virados para o centro do feijão. Dentro desse quadrilátero imaginário formado pelos arrozes e o feijão estariam a paçoca e a espuma de ovo frito, esses sim dispostos com uma total liberdade dentro desses limites (o Thio odiava o autoritarismo culinário, por mais paradoxal que isso possa parecer ao se ler a descrição acima). Apesar de toda essa tecnicalidade, o visual resultante era, diziam, magnífico. Eu pessoalmente não tive a oportunidade de ver, infelizmente.

          Em todo o caso, para ilustrar esse texto, fui atrás de uma imagem do prato vencedor e até apelei para o Thio. Apesar do tempo que se passou e também das inúmeras decepções que o abateram à época, o Thio ainda se recorda bem da história por trás desse prato. Movidos pela inveja usual que muitos têm dos vencedores, todas as imagens foram sendo destruídas por seus inimigos, em uma clara tentativa de revisionismo histórico. Não só as imagens, mas também a reputação do Thio era massacrada a partir do que a gente chamaria, nos dias atuais, de fake news.

Era uma época ainda sem internet, e nem mesmo as fotografias tiradas pelo Thio sobreviveram, visto que sua máquina fotográfica, contendo o filme ainda a ser revelado, desapareceu do hotel onde ele estava hospedado. Ganho o prêmio, houve um massacre midiático ao Thio e seu restaurante patrocinado por uma dita elite culinária. Há quem diga que haveria por trás disso uma preocupação econômica, aliás como tudo o que move nossos dias. Se os pratos fossem minimalistas, haveria perdas para os produtores de comida, tão acostumados em nossa sociedade ao desperdício. Com essa motivação ou não, o ponto é que, baseados em fofocas, muitos ataques injustos mas constantes foram direcionados ao Thio.

Por um tempo, por conta desse prêmio e pela consequente quarta estrela concedida pelo Michelin, o restaurante sobreviveu e bem. A propósito, a quarta estrela, raridade na trajetória deste guia, era o mero reconhecimento da suprema qualidade que o restaurante do Thio adquirira ao longo de anos de vida. Lembro-me bem, apesar de pequeno, da festa que os promotores do guia fizeram quando da entrega.

          Mas, vivemos em uma comunidade onde informações distorcidas, desprovidas totalmente de bases reais, de tanto serem repetidas por certos meios, acabam influindo a opinião pública. Tanto bateram no Thio que, ao final, o próprio Guia Michelin rebaixou a classificação para três estrelas. Houve comemoração generalizada e, ironia, o único restaurante brasileiro com três estrelas do Michelin era considerado nos meios jornalísticos como um perdedor, um perdedor de uma quarta estrela.

          Nunca ninguém tinha presenciado tal massacre midiático baseado em evidentes e manipuladas falsidades. Claro que, muito tempo depois, na vizinha República de Hygina, um massacre de iguais proporções levou a um golpe contra uma presidenta legitimamente eleita, mas menciono isso apenas a nível de comparação, longe de mim querer entrar em tais detalhes nesses tempos atuais.

          O restaurante foi alvo de ataques físicos e, para preservar os seus fiéis clientes, o Thio acabou encerrando sua aventura culinária de então. Ele ainda, para nosso imenso deleite, prepara suas receitas maravilhosas. Nada de minimalista, no entanto, a melhor culinária do Thio baseia-se em fartura de produtos naturais e um tempero que além de saboroso preenche a casa com sua generosa fragrância.


quinta-feira, 16 de julho de 2020

Máquina de moer

         Se há algo que sobra nesses tempos de quarentena são as lembranças. Não importa o quanto de trabalho ou de preocupações que se tenha nesses malucos dias atuais, nossa mente sempre acha um escape para lembrarmos de coisas que nos marcaram no passado. No meu caso, uma parte significativa dessas memórias tem a ver com lembranças culinárias, de receitas que minha mãe fazia, memórias olfativas, paladares e visuais.

Ingenuamente, eu agora tento repetir aquelas tantas receitas que se grudaram em minha mente. Descubro que, por mais que me dedique, elas nada mais serão que meras tentativas, visto que nunca irei conseguir reproduzir totalmente seus sabores e os seus cheiros, e tampouco aquele carinho que mamãe sempre teve ao fazê-las. E isso, faz toda a diferença.

          Mas eu me esforço!

          Outro dia eu me lembrei de uma máquina de moer que mamãe usava tanto para fazer uma rústica paçoca de carne quanto para uma deliciosa rapadurinha de amendoim, duas receitas que não negavam a sua origem do interior paulista. Ela tinha nascido em Itu e vivera em uma fazenda quando criança.

          É claro que essas lembranças me atazanaram a mente até que eu me rendesse à vontade de fazê-las. Vamos lá. Para a paçoca de carne, digamos que precisaremos de meio quilo de carne que pode ser colchão mole ou lagarto, cortado em tirinhas (não precisam ser muito finas pois elas vão depois ao moedor de carne). Aí você frita essa carne em um pouco de óleo com uma cebola cortada em tiras (novamente, não precisam ser pedaços muito pequenos), salsinha, cebolinha, sal e pimenta a gosto. Minha mãe usava esses temperos, cozinha rústica é assim, mas acho que dá pra gourmetizar um pouquinho, se quiser, colocando outras ervas ou fritar em azeite ao invés de óleo.

Não me lembro de minha mãe colocar bacon nessa mistura, mas uma de minhas tias faz dessa forma. A gosto do cliente. Uma vez frita a carne, misture-a com flocos de farinha de trigo e aqui é que são elas, vai meio no olho, o suficiente para que a mistura resultante não seja só carne mas também não pode ser só a farinha. O famoso um bom bocado de flocos de farinha de milho. Precisão aqui é tudo... rsrsrs. Se precisar, coloque mais óleo na panela e deixe fritar tudo um pouco mais antes de passarmos à última etapa.

          Com essa mistura já frita e já um pouco esfriada, passe inicialmente a carne com cebola em um moedor de carne manual. Claro que os modernos podem usar um processador/moedor elétrico, mas qual a graça? O melhor é aquele manual (e de ferro, não o de alumínio) que a gente encaixa no granito da pia e move a manivela, coisa de fazenda. Na primeira moída vai só a carne com a cebola. Se quiser mais moído, pode passar tudo isso uma segunda ou mesmo uma terceira vez. Em uma última passada pela máquina, coloque a carne já moída junto com tudo o que ainda sobrou na panela, incluída aí a farinha de milho frita. Pronto, a paçoca está pronta!

Não esquente (nem a cabeça, nem a mistura), coma-a morna com arroz e feijão ou com uma couvezinha picada e refogada na manteiga ou mesmo com uma banana. Comida de Bandeirantes, como se dizia lá em casa. Eu particularmente comia a paçoca solo, sem acompanhamento.

          E, depois de lavar a máquina de moer carne, pode usá-la para fazer uma outra receita, essa doce. Mas quem tem diabetes ou tendência de engordar está aconselhado a parar a leitura por aqui.

          Vamos lá. Ponha um litro de leite (o integral é melhor, ou tipo A para os antigos, o ideal) para ferver e assim que a espuma começar a subir, abaixe o fogo e junte um quilo de açúcar (eu avisei... é um doce para os formigões...). Deixe cozinhar bem até ser possível se ver o fundo da panela depois de uma passada rápida de colher. Esse ponto você vai aperfeiçoando com o tempo, no caso, claro, de você ter coragem de encarar outras vezes essa maravilha da culinária extremamente doce.

Nesse momento, você já terá um pacote de meio quilo de amendoim torrado no forno e passado um par de vezes pela máquina de moer (a mesma que você usou para a paçoca de carne, mas depois de lavada). Pode moer o amendoim com casca e tudo que isso irá dar uma coloração mais rústica ao doce, mas se tiver paciência de descascá-lo, não serei eu a impedir. Junte esse amendoim moído ao leite açucarado, deixe cozinhar mais um pouco e, ainda quente, espalhe sobre um mármore untado com manteiga. Deixe esfriar e corte em pequenos losangos. Era a minha sobremesa predileta quando criança e mamãe sabia disso. Há a variação sem amendoim (puro açúcar!) e a com chocolate que eu nem gostava tanto assim.

          Esse, definitivamente, não é um doce para amadores, é para os profissionais...

          Quando a quarentena começou, tive a estúpida pretensão de tentar não engordar e não é que estou conseguindo me manter no meu peso meio gordinho? Sei que isso poderá não durar muito pois, semana que vem, rapadurinha de amendoim a caminho... Relembrar é o que nos sobra nesses tempos bicudos.       


quinta-feira, 9 de julho de 2020

de repente, 60


           de repente, nasci

dia dos bombeiros

signo de câncer (que é o pior dos signos de acordo com uma sobrinha), mas com ascendente em libra (o que ameniza um pouco)

          de repente, aprendi a andar

          a falar (pouco, sei, é a timidez), você tem o direito de ficar calado

          a correr

          a sonhar (é a inquietude)

          de repente, a pinguela sob o córrego dos sapateiros

          o costa manso, o prof. athos.

          a casa azul, o tri no méxico

          o piano, naquela casa após o biriba, o cão preto e velho que me atormentava

          a gangue da bicicleta, o passe na forma de uma carta de baralho

          a ditadura não percebida mas presente, cruel

          de repente, a timidez na escola

de repente, tudo o que falar será usado contra você

          de repente, a thaís, sonhei

ela não

mais piano

          o xadrez, ganhei umas, outras perdi

          de repente, tudo muda

          de repente, outro mundo

          de repente, cursinho, vestibular, poli, ime, o piano deixado para trás

          de repente, paraguai e argentina, quinze dias sem dormir em uma cama, trens de carga, estações, bancos duros, o sorvete de chocolate branco e cereja de bahia blanca, a loucura de uma viagem insana

          de repente, o coral do lasar segall, o tenor tímido

          de repente, a percepção política se aguçando

          de repente, o laboratório fotográfico improvisado

          de repente, o papa por uma porta eu por outra, saindo

          de repente, outra viagem, em direção a machu picchu, futuros amigos de campinas no trem para corumbá, trem da morte, a brincadeira da moedinha na espera, tengo tantos hermanos, mais timidez, outros amigos, o foto no lambe-lambe, os quartos coletivos, a cidade de copacabana ao largo do lago, bolívia, santa cruz de la sierra, saída rápida, outro golpe militar, mais trens, amigos para trás, cusco, machu picchu, cusco, a festa do sol, volta pelo chile, bolívia interditada, invento um caís, arica, mais timidez, santiago, rádio colo-colo, os dias da espera, pai, me manda uma passagem?

          de repente, mais coral, campos do jordão e embú

de repente, diretas já e a frustração do primeiro acordão político, da primeira enganação

de repente, mais ime, mais timidez, mais frustrações

          de repente, bacharel, mestre, professor, mais ime

          de repente, a primeira morada, a sala sem móveis, mas a mesa e a estante de livros sempre, sempre

          cortázar, scorza e marquez

          mais timidez, a vizinha, a namorada que infelizmente magoei, o tempo na janela

de repente, nini e o postal, primeiros escritos

de repente, liverpool,

de repente, o pão que o inglês amassou...

brincadeira, tempos incríveis

quatro anos e alguns amigos

alguns amores

alguns escritos

os clássicos brasileiros na biblioteca universitária

de repente, a irlanda, e varsóvia, e bielefeld, e londres, londres, londres, e manchester, e edimburgo, e espanha, e portugal, e frança, e alemanha, e holanda, quando será a sua próxima viagem?, meu orientador perguntou-me um dia, e zurique e bélgica e tantos mais

quatro longos anos a preencherem lentamente minhas memórias

de repente, muitas saudades disso tudo

de repente, esperança erundina

de repente, volto

de repente, primeira esposa e primeiro livro

de repente, primeiro prêmio e primeiro livro

de repente, viagens e outras mais

muitas viagens

de repente, sherbrooke, quantas vezes fui?

e tóquio, e méxico, e ottawa, e bielefeld, e munique, e murcia, e méxico, e trondheim, e munique, e marselha, e floresta negra, e mar del plata, e méxico, e puebla, e oslo, e marselha, e floresta negra, e munique, e toronto, e geiranger, e paris, e trieste, e montreal, e montevidéu, e lisboa, e marselha, e floresta negra, e munique, e guanajuato, e porto, e coimbra, e diamantina, e montevidéu, e munique, e bahia blanca novamente, e curitiba, e mendoza, e córdoba, e pequim, e chemnitz, e torun, e colônia, e lyon, e madrid, e budapeste, e miskolci, e cartagena, e marselha, e campinas, e brasília, e fortaleza, e natal, e manaus, e porto alegre, e rio grande, e florianópolis, e maringá, e belo horizonte, e rio claro, e rio, claro

não necessariamente nessa ordem

e outros mais, memória sempre falha

de repente, idas e vindas à procura de algo que custava achar

muito tempo assim, timidez e frustrações

de repente, mais frustrações

mas, de repente, simetria

de repente, outros livros publicados

outros sorrisos, outras lágrimas

de repente, muitos alunos, tentei não atrapalhar

de repente, celebrei seus sucessos

de repente, vice, chefe, vice, diretor

de repente, a oposição sistemática

tanto aprendi

algo fiz, acho

algo aprendi, certeza

de repente, sou professor

de repente, onde foram parar tantos anos?

de repente, onde foram parar tantos sonhos?

de repente, onde estão os amigos?

de repente, onde estão todos?

a família, presente

mãe e pai, saudades

os amigos fiéis, presente

          de repente, o que resta além das memórias?

          de tantas fotos tiradas

          o que resta dessas viagens todas?

          o calor do abraço, o beijo da despedida

          a névoa, a névoa

          de repente, mais ime, excesso de ime

          de repente, o livro branco e muito depois o amarelo, passando pelo azul

para onde foram todos aqueles artigos?

          e os relatórios que ninguém lê?

          e os fins de semana, as noites curtas

          noites que excitam, noites que assustam

          mas, de repente, também mais livros, mais contos e mais sorrisos

          de repente, outros amigos, outras lembranças, memória renovada

de repente, já superei o jovem há mais tempo, o cidadão do mundo e, por fim, a idade em que sabia de tudo

de repente, agora, só vivendo e aprendendo

de repente, amores e frustrações acumulados

          de repente, a pessoa certa

          o amor certo

          que segue e seguirá

de repente, leitores fiéis aparecem

de repente, o blog, o primeiro romance publicado

de repente, uma coleção de quintasfeiras

          de repente, a redescoberta de lisboa

          de repente, óbidos e a fólio

          de repente, vem pra rua

          de repente, fique em casa

          e no intermédio, golpe(s)

          tragédia anunciada, tragédia realizada

de repente, novos livros, novos amigos

          de repente, as dores da idade, as cores da cidade

          ou vice-versa

          de repente, a quarentena me atropelou em uma fase tranquila, coração acalmado, mente quieta

          de repente, a quarentena ao lado dela, da pessoa certa

          aprendendo a cozinhar

          de repente, na espera de comprar um piano, mas isso é segredo

          de repente, escrevendo como nunca, lendo como sempre quis

de repente, 60 na quarentena

de repente, talvez ainda haja tempo



quinta-feira, 2 de julho de 2020

Anos 60, dois de julho

          Sempre que o calendário alcança o zero em seu último dígito surge a discussão se mudamos de década ou não. Ou não estive muito atento a essas coisas antes, ou essa discussão não existia de fato, mas acho que foi na passagem de 1999 a 2000 que ela tomou mais peso, pois trouxe consigo a grande questão de estarmos ou não mudando de séculos naquele momento. (Diga-se de passagem, o Thio Therezo nunca se conformou com o tal entusiasmo, à época, de se chegar ao ano 2000, afinal, numericamente falando, os dois números, 1999 e 2000, tinham mais em comum do que a maioria das passagens de ano. Ambos números compartilhavam o mesmo padrão: começavam com um dígito seguido por outro dígito que se repetiria três vezes. Vai entender o porquê de tanto auê!)

          Mas a questão da mudança de década e de século é que entusiasma as pessoas. E as frustram também, pois 2000 ainda não era o século vinte e um,  assim como a passagem de 2019 para 2020 não é mudança de década, a tal década de 20 que só começará ao se iniciar o ano de 2021. Em todo o caso, é uma das tais exatidões que só empobrecem a vida, vai entender!

          Mas, por que menciono isso? Pode ser besteira nessas épocas de pandemia e em tempos de mentiras generalizadas, mas o ponto é que na primeira vez que ouvi tal discussão eu percebi um repentino envelhecimento de década em meu corpo. Eu, que sempre dizia que tinha nascido na década de 60, repentinamente me vi jogado e abandonado, cruel e injustamente diga-se de passagem, na década de 50... Realmente, isso não é justo! Não bastava o passar dos anos, o surgimento das dores, o esquecimento das palavras, agora mais essa? Perder uma década assim sem mais nem menos, por conta de uma besteirinha? Confesso que nem pude dormir direito no dia da tal descoberta e, dia seguinte, cheguei a comentar isso com o Thio Therezo. Após alguns minutos de reflexão, ele me sugeriu uma solução que comecei a adotar desde então: nasci nos anos 60, já que não poderia dizer mais que nasci na década de 60, mas isso, confesso, nunca me satisfez totalmente.

          Acontece que outro dia mesmo o Thio, impaciente, antecipou-me o seu presente de aniversário desse ano e surpreendi-me com ele. Sim, posso voltar a dizer novamente que nasci na década de 60!

          Foi assim. Ano passado, tempos pré-pandêmicos, o Thio visitou o Vaticano. Muitas foram as razões para tal visita. Por um lado, o Thio queria rever o Frei Chico, que era assim como ele se referia ao Papa atual nos bons tempos da juventude de ambos. É certo que, na primeira vez que se viram desde a escolha papal, o Thio usou o tratamento Sua Santidade o que gerou uma estrondosa gargalhada compartilhada entre ambos de tão estranho isso soou naquele momento. Desde então, sempre que se encontravam em um ambiente mais informal, chamavam-se mutuamente de Frei Chico e Thiozinho, trazendo assim e momentaneamente um tempo passado que tanto os agradavam.

          Mas não só para revê-lo e relembrar velhos causos que o Thio visitou o Frei Chico. Ele queria consultar alguns documentos na famosa Biblioteca do Vaticano e aproveitou que passava por perto (o perto sendo a Europa) para tal. Claro deve ficar ao leitor que, para desespero dos estressados assessores papais, antes que pudesse fazer o pedido para visitar a Biblioteca (pedido pró-forma, o Thio sabia, pois o velho Frei Chico certamente o autorizaria), foram horas de conversas e risadas. Se, por um lado, o Thio aproveitou a ocasião para pedir-lhe conselhos espirituais, por outro, a Sua Santidade queria ouvir a opinião do Thio sobre um probleminha que ele estava tendo com o seu inoportuno antecessor, o tal pastor alemão. Frei Chico bem sabia dos entreveros que o Thiozinho tivera no papado anterior, que inclusive o levara a se afastar do Vaticano por alguns anos, e queria dividir suas análises a respeito. Foi quase como se os dois estivessem em um confessionário trocando papéis frequentemente: o que lá se falou, lá ficou.

          Olha eu aqui me desviando novamente do assunto, deve ser a tal da idade chegando, acúmulo de coisas para contar leva-nos a essa confusão e dispersão. Deixemos essa questão interpapais de lado e voltemos ao assunto principal. Em certo momento, os desesperados assessores interromperam a conversa dos dois velhos amigos pois o Papa estava atrasado para a famosa benção semanal, já a praça estava cheia e coisa e tal. A caminho para a janela papal, o Thio contou ao amigo sua necessidade de consulta a antiquíssimos documentos da Biblioteca e foi prontamente autorizado.

O Papa ainda tentou convencer seus assessores de que não custava nada a ele acompanhar o Thio até a Biblioteca e mostrar-lhe os arquivos. Mas, o trabalho obriga, não conseguiu tal feito pois os assessores o pressionaram novamente e, ao invés de acompanhar o Thio, ele seguiu para a benção. Como o Thio já sabia de cor o caminho, Frei Chico deixou-o ir sozinho não sem antes fazê-lo prometer que jantariam juntos naquela noite. O Vaticano havia recebido justamente no dia anterior uma remessa do famoso vinho Latte Amorevole feito pelas freiras do convento do norte da Itália e eles precisavam abrir uma garrafa e compartir um gole que fosse antes do Thio retornar ao Brasil.

          E lá foi o Thio consultar os documentos referentes à bula Inter gravíssimas do Papa Gregório XIII que tratava do que seria depois chamado de calendário gregoriano. Todos sabemos que o calendário anterior levava a pequenos desvios que vinham se acumulando ao longo dos anos e séculos. Dada a usual imperfeição matemática frente à realidade, ajustes sempre foram necessários independentemente do calendário proposto. O calendário gregoriano tampouco era perfeito, mas minimizava sobremaneira os erros. Tudo por conta dos 317 ajustes que constam na famosa bula, a maioria deles quase irrelevantes se os olharmos do ponto de vista de nosso corrido e estressante cotidiano. Claro que todos se lembram dos ajustes que estabelecem os anos bissextos e, pela recente aplicação, do fato de que os anos múltiplos de 400 não serem bissextos, apesar de serem múltiplos de quatro. Outros ajustes passam mais despercebidos e era isso que o Thio queria checar. Seguramente, já tinha lido aquela bula um par de vezes antes, mas a idade, sempre a idade, o impedia de lembrar de todas as palavras lidas ao longo da vida.

          Mesmo com o seu latim meio enferrujado (ainda mais o latim escrito no século XVI), o Thio conseguiu achar o que queria. Pediu para fazer uma cópia do documento para me trazer (não conseguiu, na pressa em que estava, um copista para tal e trouxe uma fotocópia colorida mesmo). Como ainda teria um par de horas antes do jantar com o amigo, ele aproveitou que estava naquele paraíso bibliográfico e fez outras consultas em documentos da mesma época, estava finalizando uma pequena biografia do Gregório XIII e precisa checar alguns dados, desfazer mitos, essas coisas.

          O presente que o Thio me deu nesse dois de julho foi um quadro emoldurando a parte do texto da bula papal que menciona um dos ajustes feitos no calendário gregoriano. Vou fazer uma tradução livre aqui: “por conta de ajustes estritamente necessários, é estabelecido que os anos múltiplos de 1960 devem ser considerados como inícios de décadas, ao contrário de todos os outros finalizando com o dígito zero.

          Com isso, rejuvenescido de novo, posso dizer com orgulho que nasci na década de 60! Mesmo com os vários desvios de caminho que ela traz, há de se considerar como sendo a melhor década desses, digamos assim, últimos séculos...

          Obrigado a todos pelos parabéns!