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quinta-feira, 29 de outubro de 2020
quinta-feira, 22 de outubro de 2020
Esperança Erundina
Em
1988, eu estava na Inglaterra fazendo o meu doutorado e calhou de estar em
Londres nos dias seguintes à eleição municipal de 15 de novembro. Lembro bem de
ver em um jornal inglês a notícia da eleição da Erundina para prefeita de São
Paulo. Naqueles tempos, notícias sobre o Brasil demoravam a chegar até nós, sem
a agilidade de hoje (atenção, garotada, o mundo já existiu sem internet). Era o início dos e-mails (não aqui, mas lá),
ainda restritos ao meio acadêmico mas já tínhamos, os brasileiros vinculados às
universidades inglesas, um grupo para troca de notícias. Mesmo assim, era tudo
muito lento, a carta ainda era o grande meio de troca de informações. Só para
se ter uma ideia, no ano seguinte, eu veria o famoso debate entre Lula e Collor
em uma sala na Universidade de Londres só depois da eleição propriamente dita e
já sabendo do péssimo resultado. Alguém havia conseguido trazer, de avião, uma
fita cassete com a gravação desse debate, para nosso delírio, que fingíamos não
saber o resultado só para manter ainda uma esperança. Se me lembro bem, nenhum
apoiador do caçador de marajás esteve presente naquela sala, tempos bons
aqueles.
Pois bem, voltemos um ano e lá estava eu lendo a matéria sobre a eleição da Erundina, a notícia que nos pegou de surpresa, pois apesar de tentar acompanhar as eleições à distância, não achávamos que ela teria chances de ganhar. Ela ganhou e eu, ganhei o dia! Ou vários dias, semanas, meses, anos, por assim dizer. Havia, mesmo no texto do jornal inglês, um clima de empolgação com as mudanças que viriam com ela, parecia até que aqueles tempos de traição e acordões estavam sendo deixados para trás. Telma e Luiza, quem viveu esses tempos, sabe do que falo. E que luxo ter um Paulo Freire como Secretário da Educação! Uma Marilena Chauí, um Paul Singer! Ao voltar para casa (inglesa na época) naqueles dias pós eleição eu escrevi um texto chamado “Esperança Erundina”, só por escrever, só para extravasar minha alegria e esperança.
Muita
coisa mudou desde então, mudei de casa algumas vezes, viajei, perdi escritos
pelo caminho. Mas algo não mudou, meu voto, sempre que pude votar, foi para a
Erundina. Recentemente, fui atrás desse texto escrito naquele longínquo 1988,
mas não o encontrei. Lembro que tinha uma versão digital em um daqueles meus computadores
primitivos e gravada em um disquete cinco polegadas, apesar do original ter
sido escrito à mão. Mas nem uma nem outra encontrei. Lembro-me de trechos desse
texto, algo ainda não foi totalmente consumido pelo tempo em minha memória, mas
preferi não tentar reconstruí-lo, trinta e dois anos fazem a diferença na vida
e na escrita de todos. Preferi, sim, lembrar que houve um tempo muito bom que
chamei para mim mesmo de Esperança Erundina e, que coisa, voltou de repente
em minha mente, apesar de tudo que temos vivenciado.
Renovou-se,
por assim dizer, no meio dessa tragédia que nos abate dia a dia.
Esperança Erundina, agora com Boulos.
quinta-feira, 15 de outubro de 2020
Não há como... - parte II
Três. Por
conta da pandemia, acabei concentrando algumas compras em um dado supermercado
que tinha um programa de fidelidade. E, por conta desse programa, ganhei
algumas estrelinhas que geravam descontos nas compras seguintes. Não, não
estamos falando de milhões, falamos de descontos muito esporádicos de vinte
reais. Usava-os e sonhava em voltar aos meus velhos hábitos algum dia, ainda
mais que o tal supermercado aumentou todos os produtos (é do sistema levar
vantagem em tudo, ainda mais vantagem em cima das desgraças que afligem a
sociedade). Mês passado, ufa, ganhei duas estrelinhas para usar no mês
seguinte. Mas, quando fui utilizá-los, o supermercado anunciou uma mudança no
programa de fidelidade. Rojões para todos os lados, auto elogios insanos como
sempre acontece nesses casos, eu fui apresentado a esse moderníssimo programa.
Mas, e as porras das estrelinhas que já tinha ganho? Desapareceram...
sumiram... assim como a cara de pau dos tais “empresários doadores em tempos de
pandemia”, tão bondosos eles são. Escrevi ao supermercado perguntando se eles
iriam honrar os prêmios que supostamente ganharei nesse novo programa do mesmo
jeito que honraram as... as... estrelinhas que sumiram. Ainda espero resposta
e, creio, muito esperarei.
É, não há como...
Quatro. Acabo
de ler num jornal de São Paulo que mais um indicado a um cargo nesse governo
(ainda precisa ser sabatinado no Senado) mentiu sobre o seu currículo: ele
dizia que “defendeu um pós-doutorado antes de ter o título de doutor” pois “na
Europa é assim...”. Como tem sido já um hábito, a própria universidade indicada
por ele desmente o tal estágio de pós-doutorado (além do fato de que não há
“defesa” em pós-doutorado, que isso não é título). Mas quem se importa? O gado
simplesmente aplaude!. Como temos vivenciado nesses tempos sombrios, isso não é
nada de muito anormal por aqui, mas a palavra “mentira” ou variações não
apareceram, de fato, no texto jornalístico. Dizia apenas que o tal candidato
tinha “exagerado” em seu currículo. Sem comentários. Aliás, um só: isso tinha
sido só o começo da tragédia.
Definitivamente, não há como...
Cinco. E por
falar nisso (esse texto não acaba...), há uma escola estadual na Rua João
Moura, em Pinheiros, São Paulo. Quem passar pelas redondezas logo perceberá que
é uma região que está bombando com inúmeros empreendimentos imobiliários. Pois
bem, o Ministério Público protocolou uma ação contra essa escola (pública, do
próprio estado), ameaçando interditá-la por conta do barulho que os seus alunos
fazem. Deixando de lado o fato de que isso ocorre no meio de uma pandemia em
que as escolas estão fechadas (deve ser o barulho das aulas online, só pode ser...),
podemos concluir, por exemplo, que a elite local paulistana se incomoda com o
barulho que as escolas públicas fazem, e entendam isso do jeito que quiser,
literal ou figurativamente. Longe de mim inferir que o terreno da tal escola é
valioso demais, para a elite, para comportar uma mera escola pública. Aliás,
lembro de um colunista da Folha (não direi o nome) que uma vez defendeu que o
campus da USP era valioso demais para abrigar uma universidade e propunha
vendê-lo para a iniciativa privada que faria um melhor uso dele com shoppings e
escritórios.
Preciso repetir?
Seis. E aí,
um supremo do judiciário manda soltar um supremo do PCC...
Como
diria o Thio Therezo, não há como o Brasil dar certo. Não há...
quinta-feira, 8 de outubro de 2020
Não há como... - parte I
Um. No
meio da pandemia, a minha carteira de motorista venceu. Acontece, mas o que fazer?
A sorte foi que ela venceu quando o Detran já tinha esquematizado todo um
sistema de renovação via online. Fui lá, entrei na página, cadastro daqui,
cadastro dali, senha acolá, leitura interminável de instruções desconectadas,
mas finalmente consegui entrar com um pedido de renovação, aproveitaram minha
foto e a biometria. Marcaram uma data para o exame oftalmológico (única coisa
presencial). Lá vou eu, ficha daqui, ficha dali, exame, dificuldades, como
sempre, na leitura biométrica, uma boa conversa com o médico que me atendeu e
pronto, renovada estava.
Mas o Detran avisava que não iria imprimir ainda a carteira
de motorista, só depois que a pandemia permitisse. Entendo perfeitamente, até
razoável. Qual a solução? Eles mesmos indicavam: baixar a carteira digital por
meio de um aplicativo. Lá vou eu, baixo um, cadastro daqui, senha ali, não
serve, a senha precisa ter tal e tal característica, acerto finalmente uma
senha aceitável em uma terceira tentativa até descobrir que o app que tinha
baixado não era o que precisava, ele me dava todas as informações sobre minha
vida de motorista mas, para baixar a carteira, precisava de um outro app mais
específico. Lá vou eu de novo, cadastro daqui, senha dali, não, essa senha não
serve, imbecil (e o palhaço com um caderninho do lado para anotar todas essas
senhas, cada uma com uma característica, não dá mais para usar a mesma para
todos os lugares).
Pronto. App baixado e funcional. Vou tentar baixar minha
carteira (que já tinha sido renovada, conforme o primeiro site me atestava) e,
surpresa, preciso de um par de números para confirmar a existência da carteira.
Um é o Renavam, que, acredito, é o mesmo da antiga carteira, e o outro, como
assim?, é um número que aparece na carteira impressa e depende do documento. Ãh?
Para ter a carteira digital, preciso da carteira impressa, mas não tenho a
carteira impressa por conta da pandemia. E a solução proposta do Detran para a
ausência da carteira impressa é usar a digital... Escrevi pedindo instruções e,
receio, irei esperar até a próxima pandemia por uma resposta.
Não, não há como dar certo...
Dois. Fui ao
banco retirar um dinheirinho. Fazia tempo que não ia fisicamente à minha agência
por conta da pandemia. Chego lá e tem uma folha A4 dizendo que a minha agência
tinha sido incorporada a outra agência distante, talvez, uns dez quilómetros,
aliás muito inconveniente para mim (a que tinha escolhido anos atrás ficava a
dez minutos a pé de meu trabalho e essa nova, sei lá onde...). Nenhum aviso prévio
ao palhaço do cliente sobre essa mudança, nenhuma opção de escolha ao palhaço
do cliente, nada, nada, surpresa total! Sabemos todos que, para manter seus lucros
abusivos, os bancos optaram por fechar agências e despedir pessoas (além de
contratar uma equipe de marketing para dizer o quão bonzinhos e caridosos eles
têm sido na pandemia) e, além disso, tratam os clientes como palhaços. O pior é
que escrevi à minha gerente e, pareceu-me, ela não entendeu minha indignação
com o fato de ser tratado de forma desrespeitosa e não profissional nesse caso,
ela simplesmente não percebeu nada, acho até que achava sinceramente que o
banco tinha agido de forma correta. Nem um pedido de desculpa por ter falhado
em, ao menos isso, me avisar, apenas uma ameaça velada que, se eu tentasse
mudar de agência, teria problemas decorrentes da mudança de cartões e outras
coisitas. A anestesia social está a tal ponto que não se percebe mais a falta
de cidadania no tratamento com as pessoas.
Não, não há como...
quinta-feira, 1 de outubro de 2020
Comigo
Ontem
o meu abraço ficou novamente por aqui. Apenas escrito. A minha solidão está
cada vez mais insuportável e todas as minhas máscaras e todos os meus teatros
estão a tornar-se insuficientes. Ontem a minha mão ficou também novamente por
aqui… agarrada apenas à caneta. Os teus dedos assim ficam estranhos, meu amor…
Todo o meu ontem do hoje e do amanhã é percorrer-te sem te tocar nas recordações que vou escrevendo. Vou passando assim os meus dias. Escrevendo e bebendo. Ontem fui despedido. Mais uma vez. É o terceiro emprego que perco por causa de chegar ou bêbado ou atrasado. Apenas quero levar-te comigo para conheceres o meu trabalho. E para te trazer, tenho que beber e levar-te naquelas folhas todas. Eles não percebem. Não te veem e apenas me despedem e expulsam a mim. Mas tu reconfortas-me. Abraças-me e beijas-me só por aqui. Em letras. E eu não sei até quando irei aguentar isto.
Agora
sigo, como toda semana, ao correio. Envio-te mais uma carta, que novamente
seguirá sem resposta. Acumulo lembranças só para afogá-las todas na bebida,
para em seguida ressuscitá-las na forma dessa tinta seca espalhada pelo papel
branco.
E
sigo escrevendo, escrevo, envelope e envio, uma vez por semana.
A
moça que me ajuda nesse caos que é a minha casa, arrumando e tirando o pó dos
recantos invisíveis de meus pensamentos, ela estranha o quanto escrevo, menos o
tanto que bebo, mais sim o que tanto escrevo. Cria coragem e pergunta o que
tanto merece um papel em branco ser preenchido afinal e eu respondo que és tu,
tu serás sempre a única razão para um papel receber garranchos e respingos
dessa bebida amarga a que me imponho diariamente. Bebo e escrevo e relembro.
Ela sorri e segue o seu destino que, vez ou outra, passa pelo apartamento
fedido em que vivo, passa por esse espaço merecendo uma limpeza. Ela sorri, eu
também, mas eu só de pirraça, se é que posso assim dizer. E tu lês, certeza
tenho que lês meus desesperos e desesperanças, garranchos no papel em branco
que merece ser preenchido.
Vou ao correio, quem não iria se te conhecesse?
-
Já verificou se não mudou de local? Peço desculpa por estar a meter-me na sua
vida, mas já enviou tantas cartas para esta morada e nunca recebeu qualquer
resposta. Acho que deveria…
Ela
só queira ajudar, mas eu não tenho paciência para ninguém. Poderia contar-lhe
parte do que fomos e que nunca partiu, mas preferi sentar-me no chão e começar
a escrever.
-
Desculpe, mas não pode ficar aí no chão…
Saí
dos correios não porque ela estava a mandar, mas porque precisava de ir beber
para completar o que já tinha escrito. Precisava de abrir a porta. E esta porta
de correr até ti para te abraçar por letras só assim se abre.
Esta noite vomitei novamente os lençóis. A almofada já tinha adquirido uma cor que nem um coquetel de arco-íris poderia definir. Enrolei tudo e coloquei-os no lixo. Só depois me lembrei que não tinha outros. Ainda tinha algum dinheiro guardado do último emprego, mas não fui comprar outros lençóis. Fui abrir mais portas até ti. Há dias em que preciso mesmo de o fazer com mais regularidade. Esta é a minha vida. Comigo contigo sem ti …
Voltei
para casa no habitual horário da desesperança. Abri portas mas tu não
entrastes. Escancarei janelas que tu ignorastes. Deixei folhas em branco sobre
a mesa na, agora sei, vã expectativa de que surgissem, milagrosamente, tua
resposta aos meus apelos, às minhas cartas que foram se perdendo em algum lugar.
Prefiro ainda pensar que o correio andou perdendo todas aquelas cartas que
enviei, mas no fundo sei que não foi isso.
Foi
o que, então?
É
estranho, sei, mas sempre que bebo, deixo um copo a mais por perto, é tua
presença sendo requisitada, lembranças que não as deixo se perderem nunca, um
brinde necessário entre nós dois que talvez nunca mais se repita.
Agora, penso triste, só há dois caminhos a seguir. Olho para a rua e vejo os carros passando em alta velocidade, esse é um. E o outro, esquecer-te, dolorido demais para esse acabado ser que aqui bebe e escreve...
[[ Esse é o segundo dos dois contos escritos em dueto com o poeta português João Dordio e que aparecem publicados no livro "Duetos Dordianos" (que eu costumo chamar de "Duelos Dordianos") em 2K20 pelo selo In-Finita.]]