quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Alinhamento natalino


Faz um tempinho isso, foi numa destas tantas noites de Natal a que somos atropelados anualmente. O Thio Therezo, sei disso porque ele me contou um dia, adorava estas noites. Não tanto pelas conversas que normalmente as povoam, nem tanto pelo silêncio imposto para se assistir a missa do galo pela TV, nem tanto pelas trocas de presentes, sinceros ou hipócritas ou pelos parentes que só vemos esporadicamente. Nada disso, mas sim porque mamãe, sua irmã, fazia o famoso lombo assado com farofa, creme rosê e purê de maçã.

          O Thio esperava o ano todo por isso, sabíamos todos e, quando chegava, nada o distraia de seu prazer. Seu olhar era diferente, sua alegria, ele até aguentava as provocações de meu pai exercendo o costumeiro e legítimo papel de cunhado.

          Pois bem, naquele Natal surgira a história do alinhamento de dois planetas que estaria afetando o cotidiano e, como sempre são com essas coisas, estaria indicando tempos melhores, o que, de fato e real, estava sendo cada vez mais raro. Papai dissertava e dissertava sobre o tal fenômeno sem descuidar de seus olhares ao Thio. Ele esperava algum tipo de reação do cunhado, afinal de contas o Thio era um renomado especialista em questões tanto astronômicas quanto astrológicas, tanto das científicas quanto das divinatórias. Famosas, por exemplo, ficaram as frequentes consultas do Vaticano a ele para dirimirem dúvidas históricas, o que incluiu em certo momento, por exemplo, uma cuidadosa revisão do calendário usado atualmente e que só não foi colocada em prática por conta de obscuros interesses econômicos.

          Mas voltemos ao alinhamento natalino que tanto empolgava o papai. Já gasto todo o seu aparente entusiasmo e frente ao silêncio do Thio, papai resolveu se dirigir especialmente ao cunhado:

          - E aí, Thio, o que me diz?

          - Ah? – ele parecia distraído saboreando o lombo suíno.

          - O que me diz, Thio?

          - Esse porco está divino. Parabéns, mana, você se superou!

          - O que? Você só tem isso a dizer?

          - Claro que não, o purê de maçã, soberbo! Como pode algo tão simples de ser feito ficar tão bom!

          O pai ficou meio sem palavras frente à reação do cunhado, ainda mais que mamãe se deliciou frente a tantos elogios e nada que se falasse naquele  momento poderia superar aquela carinhosa troca de olhares entre os irmãos queridos.

          Logo, a missa do galo começou e fez-se o habitual silêncio. O Thio, claro, aproveitou a paz e repetiu mais uma vez o seu prato natalino. Enquanto um e outro, missa e prato repetido, eu via o meu pai incomodado com a falta de resposta do Thio. Acabou-se a missa, vieram os fogos de artifícios vistos da varanda, os abraços e beijos e a usual confraternização.

          Passado este momento, justamente no pós-jantar, quando a mente e corpo pedem já o seu descanso, e antes que o pai tivesse a oportunidade de retomar o assunto do alinhamento dos dois planetas, o Thio comentou:

          - A propósito, falar em alinhamento de dois planetas só supera, em nível de baboseira, a tal da sensação térmica que os jornais costumam anunciar. Ora, dois planetas estarão sempre alinhados...

          Silêncio se impôs à preocupação ao que certamente viria.

          -  ... se ainda fossem três planetas, até que teria alguma graça, mas dois! Dois?

          Mamãe pensou rápido e propôs abrirmos os presentes do amigo secreto. Mal sabia ela que papai tinha tirado justamente o Thio e, esse, o papai. Os tais dias melhores tão euforicamente anunciados pelo alinhamento planetário teriam que esperar ainda um tempão para entrarem em cena.

          Feliz Natal a todos!


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