Não é segredo
algum que as relações do Thio Therezo com a República de Hygina já duram
décadas e décadas. Eu particularmente não entendo o tempo que ele gasta naquela
república vizinha, visto a grande diferença que existe, moral e política, entre
o Thio e aqueles habitantes. Mas, parece, o Thio se empolga em entender como as
aberrações daquela república podem acontecer, um estudo sociológico, digamos
assim. Um país baseado em acordos esdrúxulos e traições sistemáticas, na sua
opinião, deve merecer sim teses e teses e mais teses. Mesmo assim, haja
paciência.
Pois bem,
tempos atrás, o Thio foi, mais uma vez, convidado para ministrar uma palestra
na abertura do “ano jurídico” daquela república. Seguia o mês de maio, o que
significava que finalmente a indústria jurídica iria começar a funcionar e
teriam quase dois meses de trabalho antes do próximo recesso. O Thio, então,
preparou-se para falar aos ministros do MTF (Maioral Tribunal Federal). Ele
queria, no entanto, falar aos maiorais algo que não fosse apenas uma usual
retórica jurídica, pois, sabia que por maior que fosse o seu conhecimento nesta
área, reconhecido internacionalmente que era, não conseguiria competir com
eles, invencíveis seres que a ninguém precisam se justificar.
Lembrou-se de
uma história e resolveu focar sua fala nela. Décadas atrás, em um de seus
inúmeros contatos com José Saramago, discutiram um livro que o escritor
português estava começando a escrever. Algo ainda meio vago, mas centrado na
história do cerco de Lisboa. As inúmeras conversas que os dois tiveram tomando
vinho tinto e cercados de beleza naturais e artificiais levaram, por fim, o
Saramago a centrar o enredo daquele livro em torno da palavra Não que, acrescentada
indevidamente em um texto, modificaria a relatada história da expulsão dos
muçulmanos de Lisboa no século XII.
Não que o Thio
tivesse pensado em compartilhar esta história com os maiorais apenas pelo
prazer da narrativa ou curiosidade histórica, o que talvez eles até apreciassem
em última instância (mesmo não sendo, obviamente, fãs do escritor português,
muito à esquerda para eles). Não, não foi isso, o Thio achava que essa
introdução poderia abrir caminho para comentários outros que tinham mais a ver
com a direção à qual a indústria jurídica de Hygina se enredava por aqueles
tempos.
Não muito
tempo antes daquela fala, os maiorais tinham, por exemplo, decidido que a
expressão constante na Constituição “o ensino público é gratuito”
poderia ser simplesmente interpretada como “o ensino público pode ser
gratuito”, o que abriu a possibilidade de se cobrar taxas escolares, o
imperativo inequívoco virando uma possibilidade do contrário. Detalhes
linguísticos, não? Muitos podem até achar estranha tal interpretação, mas a
prudência impera, ainda mais em se tratando de decisões últimas e
inquestionáveis, pois naquele ordenamento jurídico não há quem julgue os
julgadores e ai daqueles que os contestem. É a palavra de um maioral e ponto
final.
Pior tinha
sido a decisão que o MTF da República de Hygina teve com relação a uma outra
questão explicitamente escrita na Constituição e que interpretada e
reinterpretada ao sabor das conveniências teve, ao longo de três confusos anos,
variantes que, como consequência, impediram, na prática, a candidatura à
presidência de um sujeito mal visto pelas elites locais. Lembro do Thio
gargalhar-se, apesar do trágico momento, quando um maioral, o último a votar e
com o placar empatado, justificou que votava com a maioria dos colegas. A
retórica sempre a serviço, sempre a serviço. Que o direito não é ciência exata,
sabemos todos, mas haja inexatidão!
Thio Therezo,
hoje, se arrepende de ter feito aquela palestra, ter focado seus argumentos em
um texto literário em que a inclusão de uma palavra muda todo um contexto
histórico. Ele acha que sua fala pode ter sido mal interpretada e incentivado
os maiorais a usarem como desculpa acadêmica para uma extrema liberalidade linguística.
Mas era ficção
o que Thio tinha narrado, cara, não o artigo de uma lei!
Esses dias, o
Thio acompanha a decisão do MTF a respeito de uma nova interpretação de um
artigo da Constituição que proíbe sem sombra de dúvida a reeleição nos
cargos de presidente do poder legislativo daquela república. O Não
podendo virar Sim. Há alguns, com algum tipo de pudor, que tentam, em
seus usuais arroubos retóricos, transformar um Não em um Talvez Mas
Com Tendência de Sim. Vejam bem, data vênia, nem tudo que está na Constituição
tem que ser seguido, há as leis que a gente gosta e há as que, dependendo do
momento, não precisamos seguir, há as leis explicitamente escritas mas que já
tiveram, ao ver do MTF, o seu prazo de validade vencido e portanto devam ser
descartadas. Há de tudo, para quem detém o poder ilimitado, não há limites.
Mas há! E não
é que o ridículo das interpretações chegou a tal ponto que mesmo aliados dos
acordos previamente selados preferiram na última hora trair seus companheiros a
manter a aliança e votaram que um Não significa apesar das tentativas
simplesmente Não. Ao final, a imaginativa interpretação do Não
pelo Sim foi por água abaixo, para desconsolo de muitos.
O Thio sempre achou que deve ser muito divertido trabalhar em certos lugares. Um mesmo poder refazendo as leis e posteriormente julgando os casos de acordo com as novas interpretações é, a rigor, o desejo de consumo de tanta gente por aí.
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