quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Não, quero dizer, Sim

Não é segredo algum que as relações do Thio Therezo com a República de Hygina já duram décadas e décadas. Eu particularmente não entendo o tempo que ele gasta naquela república vizinha, visto a grande diferença que existe, moral e política, entre o Thio e aqueles habitantes. Mas, parece, o Thio se empolga em entender como as aberrações daquela república podem acontecer, um estudo sociológico, digamos assim. Um país baseado em acordos esdrúxulos e traições sistemáticas, na sua opinião, deve merecer sim teses e teses e mais teses. Mesmo assim, haja paciência.

Pois bem, tempos atrás, o Thio foi, mais uma vez, convidado para ministrar uma palestra na abertura do “ano jurídico” daquela república. Seguia o mês de maio, o que significava que finalmente a indústria jurídica iria começar a funcionar e teriam quase dois meses de trabalho antes do próximo recesso. O Thio, então, preparou-se para falar aos ministros do MTF (Maioral Tribunal Federal). Ele queria, no entanto, falar aos maiorais algo que não fosse apenas uma usual retórica jurídica, pois, sabia que por maior que fosse o seu conhecimento nesta área, reconhecido internacionalmente que era, não conseguiria competir com eles, invencíveis seres que a ninguém precisam se justificar.

Lembrou-se de uma história e resolveu focar sua fala nela. Décadas atrás, em um de seus inúmeros contatos com José Saramago, discutiram um livro que o escritor português estava começando a escrever. Algo ainda meio vago, mas centrado na história do cerco de Lisboa. As inúmeras conversas que os dois tiveram tomando vinho tinto e cercados de beleza naturais e artificiais levaram, por fim, o Saramago a centrar o enredo daquele livro em torno da palavra Não que, acrescentada indevidamente em um texto, modificaria a relatada história da expulsão dos muçulmanos de Lisboa no século XII.

Não que o Thio tivesse pensado em compartilhar esta história com os maiorais apenas pelo prazer da narrativa ou curiosidade histórica, o que talvez eles até apreciassem em última instância (mesmo não sendo, obviamente, fãs do escritor português, muito à esquerda para eles). Não, não foi isso, o Thio achava que essa introdução poderia abrir caminho para comentários outros que tinham mais a ver com a direção à qual a indústria jurídica de Hygina se enredava por aqueles tempos.

Não muito tempo antes daquela fala, os maiorais tinham, por exemplo, decidido que a expressão constante na Constituição “o ensino público é gratuito” poderia ser simplesmente interpretada como “o ensino público pode ser gratuito”, o que abriu a possibilidade de se cobrar taxas escolares, o imperativo inequívoco virando uma possibilidade do contrário. Detalhes linguísticos, não? Muitos podem até achar estranha tal interpretação, mas a prudência impera, ainda mais em se tratando de decisões últimas e inquestionáveis, pois naquele ordenamento jurídico não há quem julgue os julgadores e ai daqueles que os contestem. É a palavra de um maioral e ponto final. 

Pior tinha sido a decisão que o MTF da República de Hygina teve com relação a uma outra questão explicitamente escrita na Constituição e que interpretada e reinterpretada ao sabor das conveniências teve, ao longo de três confusos anos, variantes que, como consequência, impediram, na prática, a candidatura à presidência de um sujeito mal visto pelas elites locais. Lembro do Thio gargalhar-se, apesar do trágico momento, quando um maioral, o último a votar e com o placar empatado, justificou que votava com a maioria dos colegas. A retórica sempre a serviço, sempre a serviço. Que o direito não é ciência exata, sabemos todos, mas haja inexatidão!

Thio Therezo, hoje, se arrepende de ter feito aquela palestra, ter focado seus argumentos em um texto literário em que a inclusão de uma palavra muda todo um contexto histórico. Ele acha que sua fala pode ter sido mal interpretada e incentivado os maiorais a usarem como desculpa acadêmica para uma extrema liberalidade linguística.

Mas era ficção o que Thio tinha narrado, cara, não o artigo de uma lei! 

Esses dias, o Thio acompanha a decisão do MTF a respeito de uma nova interpretação de um artigo da Constituição que proíbe sem sombra de dúvida a reeleição nos cargos de presidente do poder legislativo daquela república. O Não podendo virar Sim. Há alguns, com algum tipo de pudor, que tentam, em seus usuais arroubos retóricos, transformar um Não em um Talvez Mas Com Tendência de Sim. Vejam bem, data vênia, nem tudo que está na Constituição tem que ser seguido, há as leis que a gente gosta e há as que, dependendo do momento, não precisamos seguir, há as leis explicitamente escritas mas que já tiveram, ao ver do MTF, o seu prazo de validade vencido e portanto devam ser descartadas. Há de tudo, para quem detém o poder ilimitado, não há limites.

Mas há! E não é que o ridículo das interpretações chegou a tal ponto que mesmo aliados dos acordos previamente selados preferiram na última hora trair seus companheiros a manter a aliança e votaram que um Não significa apesar das tentativas simplesmente Não. Ao final, a imaginativa interpretação do Não pelo Sim foi por água abaixo, para desconsolo de muitos.

O Thio sempre achou que deve ser muito divertido trabalhar em certos lugares. Um mesmo poder refazendo as leis e posteriormente julgando os casos de acordo com as novas interpretações é, a rigor, o desejo de consumo de tanta gente por aí.


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