quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Celular a seu dono

 


          Como e o que me lembro no dia a dia são mistérios que nunca consegui decifrar totalmente. Por vezes, pequenas coisas sem importância me atropelam a mente enquanto que muito do que gostaria de relembrar permanece escondido de forma inacessível. Mais de uma vez, por exemplo, antes de retornar a um lugar que sei que já tinha visitado, nada me vem à mente, mas bastou chegar lá e, de repente, surgem detalhes que nem imaginava existirem. Ah, se eu virar aquela esquina, tem uma loja de sapatos; ah, atrás daquela igreja vamos ver um parque com bancos verdes; ah, o sorvete daquela confeitaria é excelente. Mas esqueço rapidamente muito do essencial, livros que li e que não me recordo de nada (quando muito, que gostei ou não), filmes que parecem ser vistos pela primeira vez (mesmo consciente de que minha memória é muito visual), histórias ouvidas, conversas.

Tenho mínimo controle sobre este processo mental, o que fazer a não ser resignar-me?

Ontem fui atropelado por uma lembrança e tento entender o porquê. Talvez nem haja uma razão, talvez tenha sido apenas um mero sinal do cansaço mental destes dias turbulentos e que leva a mente a descarregar memórias como se quisesse se livrar delas. Mas, ao contrário, tive que conviver com a lembrança o dia todo.

Por questões profissionais, na última década fui inúmeras vezes ao Canadá, Quebec por melhor dizer, Sherbrooke, cidade a duas horas de ônibus de Montreal, para ser mais específico. Nas últimas vezes que fui, eu me hospedei em um monastério bem ao lado do campus universitário, este um pouco afastado do centro da cidade. Uma pequena rodovia separa, de um lado o campus principal e de outro um campo de prática de futebol americano também da universidade e que ladeia o monastério. Finzinho da tarde eu saia da faculdade, andava até aquele final do campus, atravessava a rodovia em frente ao campo de futebol e seguia por ela, meio que no mato pois não havia calçada naquele trecho, até chegar ao monastério. E se já estivesse escuro, escuro estaria. Nada demais, apesar do pequeno desconforto pela falta de calçada. Por vezes, até parava um pouco para ver o treino da equipe de futebol da universidade. Nada que merecesse maior atenção pelo que fosse, apenas relaxamento depois de um intenso dia de trabalho.

          Um dia, escuro estava, percebi uma luz vindo do chão a um par de metros de onde eu caminhava nesse meu caminho ao longo da rodovia. Aproximei-me e encontrei um celular, um iPhone, visor quebrado mas com a luz acesa. Olhei ao redor e nada, não parecia que alguém tivesse acabado de perdê-lo. Não tive dúvidas, peguei o celular e tentei achar algum contato nele, acabei localizando uma mensagem recente de alguém e escrevi como resposta que tinha achado aquele celular e queria devolver. Segui com o aparelho em direção ao monastério mas, antes de lá chegar, recebi nele uma ligação do suposto dono. Disse onde tinha encontrado o celular e marcamos de nos encontrar na porta do monastério. Nem demorou muito para chegarem. Na caminhoneta, duas pessoas, aparentemente o dono e algum amigo. Mas não desceram do carro, eu entreguei o celular e ele começou a manusear o celular sem sequer agradecer. Conversaram entre si e me ignoraram totalmente. Como já tinha feito o que tinha em mente que era devolver, despedi-me e, de novo ignorado, entrei no monastério. Ainda olhei antes de fechar a porta e lá estavam eles ainda conversando.

          Extraordinário? Não. Mas me fez pensar, depois de um par de anos, naquilo que ocorreu. Foi tudo tão instintivo de minha parte, mas teria eu agido do mesmo jeito se fosse no Brasil?

Sem querer entrar em uma infrutífera discussão sociológica, acho que eu teria ignorado, por aqui, o celular e o deixaria por lá, seguiria em frente sem remorsos, pois como eu explicaria a posse dele? Aqui somos todos culpados, não há como fugir disso, qualquer insinuação ou suspeita contra você significa condenação e provavelmente se eu marcasse um encontro para devolver o aparelho, o seu dono viria acompanhado da polícia/promotor/juiz/carcereiro ou, pior, da milícia (que é o mais provável nestes tempos pós-golpe). Eu seguramente teria problemas em me explicar, não teria credibilidade eu dizer que tinha achado a aparelho jogado ao chão. Somos todos culpados, é a regra geral. Aqui, acho, eu simplesmente ignoraria o celular e iria embora, não por não querer devolvê-lo a seu dono de direito mas por medo. Tenho medo, sim, do Brasil que estão construindo ao nosso redor.

          Mas, lá, não tive estas dúvidas. Por outro lado, senti um gosto amargo na boca depois do desfecho, nem um agradecimento recebi, e nem esperava mais do que isso, mas isso sim esperava. Talvez minha ingenuidade tenha me levado a crer que, pela aparente segurança que sempre senti por lá (apesar do stress e cara feia dos que cuidam da entrada no país), achava que não estaria sendo também julgado. A impressão que ficou foi que, também lá e de seu jeito, eu tinha sido julgado. Tudo correu bem, é certo, e, acredito, ao me encontrarem, os dois amigos perceberam que eu era um mero estrangeiro com sotaque carregado que encontrara o celular, que não teria tido nada a ver com o seu sumiço e que só queria realmente devolvê-lo. Mas a total falta de empatia naquele momento me fez tirar conclusões que, por falta de comprovações, guardo para mim. Esse o motivo do gosto amargo na boca naquele momento e que retornou junto às lembranças de ontem.

          As coisas não se repetem, por isso não preciso refletir muito se agiria igual em situação similar ou não. Tiramos nossas conclusões, aprendemos algo, e seguimos em frente.

          Mas que é estranho ser incomodado com algumas lembranças que não deveriam importar, isto é lá verdade. Escrevo para me livrar delas e tomara que dê certo desta vez.




[[ Até o final de dezembro, três de meus livros estarão à venda na "Galeria do Livro" a preços promocionais. O infantil "Guarda-Trecos", o romance "Pigarreios" e o de contos "outros tantos". Aproveitem:




Nenhum comentário:

Postar um comentário