Como e o que
me lembro no dia a dia são mistérios que nunca consegui decifrar totalmente. Por
vezes, pequenas coisas sem importância me atropelam a mente enquanto que muito
do que gostaria de relembrar permanece escondido de forma inacessível. Mais de
uma vez, por exemplo, antes de retornar a um lugar que sei que já tinha visitado,
nada me vem à mente, mas bastou chegar lá e, de repente, surgem detalhes que
nem imaginava existirem. Ah, se eu virar aquela esquina, tem uma loja de
sapatos; ah, atrás daquela igreja vamos ver um parque com bancos verdes; ah, o
sorvete daquela confeitaria é excelente. Mas esqueço rapidamente muito do
essencial, livros que li e que não me recordo de nada (quando muito, que gostei
ou não), filmes que parecem ser vistos pela primeira vez (mesmo consciente de que
minha memória é muito visual), histórias ouvidas, conversas.
Tenho mínimo controle sobre
este processo mental, o que fazer a não ser resignar-me?
Ontem fui atropelado por uma
lembrança e tento entender o porquê. Talvez nem haja uma razão, talvez tenha
sido apenas um mero sinal do cansaço mental destes dias turbulentos e que leva
a mente a descarregar memórias como se quisesse se livrar delas. Mas, ao
contrário, tive que conviver com a lembrança o dia todo.
Por questões profissionais, na
última década fui inúmeras vezes ao Canadá, Quebec por melhor dizer, Sherbrooke,
cidade a duas horas de ônibus de Montreal, para ser mais específico. Nas
últimas vezes que fui, eu me hospedei em um monastério bem ao lado do campus
universitário, este um pouco afastado do centro da cidade. Uma pequena rodovia
separa, de um lado o campus principal e de outro um campo de prática de futebol
americano também da universidade e que ladeia o monastério. Finzinho da tarde
eu saia da faculdade, andava até aquele final do campus, atravessava a rodovia
em frente ao campo de futebol e seguia por ela, meio que no mato pois não havia
calçada naquele trecho, até chegar ao monastério. E se já estivesse escuro,
escuro estaria. Nada demais, apesar do pequeno desconforto pela falta de
calçada. Por vezes, até parava um pouco para ver o treino da equipe de futebol da
universidade. Nada que merecesse maior atenção pelo que fosse, apenas
relaxamento depois de um intenso dia de trabalho.
Um dia,
escuro estava, percebi uma luz vindo do chão a um par de metros de onde eu caminhava
nesse meu caminho ao longo da rodovia. Aproximei-me e encontrei um celular, um
iPhone, visor quebrado mas com a luz acesa. Olhei ao redor e nada, não parecia
que alguém tivesse acabado de perdê-lo. Não tive dúvidas, peguei o celular e
tentei achar algum contato nele, acabei localizando uma mensagem recente de alguém
e escrevi como resposta que tinha achado aquele celular e queria devolver.
Segui com o aparelho em direção ao monastério mas, antes de lá chegar, recebi nele
uma ligação do suposto dono. Disse onde tinha encontrado o celular e marcamos
de nos encontrar na porta do monastério. Nem demorou muito para chegarem. Na
caminhoneta, duas pessoas, aparentemente o dono e algum amigo. Mas não desceram
do carro, eu entreguei o celular e ele começou a manusear o celular sem sequer
agradecer. Conversaram entre si e me ignoraram totalmente. Como já tinha feito
o que tinha em mente que era devolver, despedi-me e, de novo ignorado, entrei no
monastério. Ainda olhei antes de fechar a porta e lá estavam eles ainda conversando.
Extraordinário?
Não. Mas me fez pensar, depois de um par de anos, naquilo que ocorreu. Foi tudo
tão instintivo de minha parte, mas teria eu agido do mesmo jeito se fosse no
Brasil?
Sem querer entrar em uma
infrutífera discussão sociológica, acho que eu teria ignorado, por aqui, o
celular e o deixaria por lá, seguiria em frente sem remorsos, pois como eu
explicaria a posse dele? Aqui somos todos culpados, não há como fugir disso,
qualquer insinuação ou suspeita contra você significa condenação e
provavelmente se eu marcasse um encontro para devolver o aparelho, o seu dono viria
acompanhado da polícia/promotor/juiz/carcereiro ou, pior, da milícia (que é o mais
provável nestes tempos pós-golpe). Eu seguramente teria problemas em me explicar,
não teria credibilidade eu dizer que tinha achado a aparelho jogado ao chão. Somos
todos culpados, é a regra geral. Aqui, acho, eu simplesmente ignoraria o
celular e iria embora, não por não querer devolvê-lo a seu dono de direito mas
por medo. Tenho medo, sim, do Brasil que estão construindo ao nosso redor.
Mas, lá, não
tive estas dúvidas. Por outro lado, senti um gosto amargo na boca depois do
desfecho, nem um agradecimento recebi, e nem esperava mais do que isso, mas
isso sim esperava. Talvez minha ingenuidade tenha me levado a crer que, pela
aparente segurança que sempre senti por lá (apesar do stress e cara feia dos
que cuidam da entrada no país), achava que não estaria sendo também julgado. A
impressão que ficou foi que, também lá e de seu jeito, eu tinha sido julgado. Tudo
correu bem, é certo, e, acredito, ao me encontrarem, os dois amigos perceberam
que eu era um mero estrangeiro com sotaque carregado que encontrara o celular,
que não teria tido nada a ver com o seu sumiço e que só queria realmente
devolvê-lo. Mas a total falta de empatia naquele momento me fez tirar conclusões
que, por falta de comprovações, guardo para mim. Esse o motivo do gosto amargo
na boca naquele momento e que retornou junto às lembranças de ontem.
As coisas
não se repetem, por isso não preciso refletir muito se agiria igual em situação
similar ou não. Tiramos nossas conclusões, aprendemos algo, e seguimos em
frente.
Mas que é
estranho ser incomodado com algumas lembranças que não deveriam importar, isto
é lá verdade. Escrevo para me livrar delas e tomara que dê certo desta vez.
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