A
chuva sequer se deu à gentileza de parar naquela manhã. Constante e irritante, o
celestial gotejamento fazia piorar ainda mais a dor que ele sentia. Encurvado,
o seu pequeno e velho e roto guarda-chuvas mal o protegia da água suja que o
céu vertia em cima dele.
Em
tempos de neotempestades, permanecer seco era um grande desafio para ele. Mesmo
dentro de casa, parecia que a chuva não parava, o tempo nublado encobria todos
os cômodos, a neblina que por vezes aparecia escondia até a TV. Pisava poças
quando andava do quarto ao banheiro, à cozinha, à sala.
Pingando
chuva e desespero, dor e desesperança, ele finalmente chegou ao hospital. Dor
insuportável, pressão lá em cima, primeira atitude foi o de deitá-lo em uma
maca para estabilização. Ele olhava o teto branco e pensava, como pagar caso
precisasse de algum tratamento? A dor seria amenizada, isso a compaixão
incluía, incluiria até um pequeno lanchinho antes de ser despachado para casa.
Mas a compaixão incluiria também algum necessário tratamento posterior?
Nem
deu tempo de pensar muito. Ultrassom assim que a dor amenizou, ressonância
assim que o ultrassom mostrou incoerências, o atendente assim que os resultados
saíram.
- Bom,
meu caro, acima de tudo, as boas notícias!
Ele
esperava por uma que fosse, dois anos de más notícias e finalmente uma que
fosse, pensou aliviado.
- Vejo
pelos exames que você não tem pedras nesse rim direito. Mesmo porque você já
não tem o rim direito...
Se o
objetivo era desanuviar o ambiente com essa piadinha, o atendente não
conseguiu, pois isso só encheu de mais dúvidas o paciente. Como assim eu não
tenho o rim direito? Desde quando? Com a confusão estampada em seu rosto, o atendente
percebeu que algo não ia bem e mudou o tom.
- Você
não tem esse rim, se lembra de quando ele foi extraído?
Ele
não se lembrava, não. Suas mãos tocaram o corpo e não sentiram nenhuma
cicatriz, recente ou não. O atendente então pediu que ele levantasse a camisa e
lá estava, a não cicatriz exibindo a sua não existência.
- Você
tem algum ultrassom mais antigo para eu poder comparar?
Não,
não tinha.
-
Então está explicado. Você nunca teve rim direito, senão apareceria uma
cicatriz. A dor, não sabemos sua procedência, mas deve ser a tal dor fantasma
que tanto se fala atualmente, algo como uma pós-dor se se pode falar desse
jeito, uma psico-dor de acordo com alguns estudos. Mero mimimi... Basta
googlear que você encontra detalhes disso, essa internet hoje em dia nos ensina
cada coisa! O conhecimento todo lá, nem se precisa mais de outras coisas.
E o atendente
parou de falar finalmente. Nunca tive rim direito? Novidade isso. Mas talvez até
nunca tenha tido essa orelha que acho que me falta agora, talvez esse dedo da
mão esquerda que ora não vejo nunca tenha existido mesmo. Talvez tenham sido
apenas frutos de minha imaginação. E eu, existo?
São
seguramente os tempos neoprépós incorporados ao cotidiano, nunca se tem certeza
do passado. O passado é o que estabelece o momento presente, tudo começa no
exato instante em que se vive, nada dessa abstração chamada passado. Talvez o
google possa me explicar esse eterno presente. Tempos de pós-passado.
O atendente interrompeu suas inúteis divagações.
- Vamos te receitar um calmante e repouso por uns dias. Mas
não muitos, porque, acima de tudo, é preciso estar ativo. Ninguém mais quer uma
pessoa que não contribua para o bem estar geral, né? E nada de ficar fazendo
artes por aí, tá? Isso só vai agravar o seu estado.
Dito isso e entregue a receita, o atendente se levantou,
nada mais havia a ser feito lá. Ele, ainda atordoado, levantou-se, seguiu até a
porta e ao tentar abri-la sentiu falta de sua mão, ela não estava lá como
acreditava que estivesse quando chegou ao hospital. O atendente percebeu o seu
embaraço ao olhar o vazio que ocupava a continuação do braço. Tempos de
pós-gentilezas, ele sorriu amarelo e abriu a porta para o confuso paciente.
Em tempos de neologismos, voltou para casa, mancando a
falta de seu pé esquerdo. Não esqueceu de passar na farmácia para comprar o
necessário remédio. Acima de tudo, sua saúde.
[[Essa é a terceira parte do conto, as duas primeiras foram publicadas nas semanas anteriores.]]
[[O Thio Therezo após ler esse conto apenas comentou: meio óbvio, não, garoto? meio década de
sessenta... Não me restou senão sorrir amarelo, e nem retruquei que são os
tempos que são óbvios, que são eles que estão muito década de sessenta, mas
deixa prá lá.]]