quinta-feira, 27 de junho de 2019

Tempos de Costa, três


          Já falei por aqui de alguns professores do Costa, a escola onde estudei sete anos nos anos setenta. Mas tem uma professora que me influenciou bastante na escolha do rumo profissional que seguiria depois.
          Éramos maldosos (os outros, claro, eu não) e ela era conhecida como Meméia não só por sua aparência física, mas acho que mais por ser professora de matemática (na realidade eu gostava muito dela). Faz parte do folclore odiar essa matéria, desqualificar quem sabe algo de matemática acima da média, fingir dificuldades adicionais. É cool errar contas básicas, faz parte. Sou da tribo que acha que em uma sociedade democrática todos deveriam ter (e se orgulhar de tê-los) conhecimentos (talvez mais do que) básicos de matemática, e de português e de história e de filosofia e de geografia e de física e de química e de biologia e de religião entre outras tantas áreas que vão definindo nossa presença nessa terra supostamente não plana. A chance de ser enganado, como temos sido atualmente, se reduz muito na presença coletiva desses conhecimentos básicos.
          Desviei-me do assunto...
          Mas o fato é que aprendi muito com ela, a Dona Esther, principalmente no que diz respeito à organização do pensamento, no pensamento lógico que, acho, ainda cultivo junto a outros pensamentos que todos eles me definem.
          Tive aula com ela por, se não me engano, dois anos e meio, e, desculpe-me mais uma vez, sempre me saía razoavelmente bem nessas aulas. Gostava da maneira como ela ensinava geometria, com postulados e demonstrações. Era um jogo de raciocínio para mim, tal e qual jogar xadrez ou montar aqueles quebra-cabeças enormes. Eu me dava bem com os seus ensinamentos e, por vezes, me recordo da maneira como ela falava, não era só na matemática que suas palavras ajudavam, como bem aprendi ao longo da vida. Faz parte da cidadania saber organizar os pensamentos, poder aprender um pouco do raciocínio abstrato, desmistificar o que parece, à distância, bem sedimentado.
          Olha eu, de novo, andando em círculos.
          Mas, voltando, poderia ter aprendido muito mais com ela do que efetivamente aprendi. Ela tinha um sotaque alemão e era judia. Pensem na história de vida que não tinha para contar pra gente, não dá para não imaginar que ela não tenha sido uma das fugitivas da segunda guerra mundial e que veio parar nesse nosso mundo. Ou estou apenas exercendo o meu direito à livre imaginação poética? Mas éramos crianças e estávamos na ditadura. Histórias não eram assim permitidas. História do Brasil, quando muito, incluía até a velha república e seu foco era sempre militarista. E de história geral, lembro da Dona Mirtes que estava mais interessada nas “fofocas” envolvendo os reis e rainhas da França do que ensinar o que estaria por trás delas.
          Mitos e fofocas, até parece que voltamos no tempo... até parece que nada mudou. Um passo à frente, dois para trás.
          Em matemática, eu sempre passava de ano sem precisar do exame final. Teve um ano, com a Dona Esther, que eu fui o único da sala a não precisar de exame, mas em compensação fui um dos únicos a fazer o de Geografia, tinha dificuldades em decorar os nomes daqueles rios todos. Impressão minha ou o ensino de humanas, naqueles anos de ditadura, evitava o que realmente interessava e se restringia a decorebas? Tivemos até aula de Filosofia, mas restringida a coisas do tipo “todo filósofo é um ser humano, Aristóteles é um filósofo, logo Aristóteles é um ser humano”. Não que essa lógica não fosse necessária (ainda hoje, tem gente que sofre com implicações simples como essa), mas para onde tinham ido as ideias dos grandes filósofos? Ou as grandes obras literárias, onde estavam? Queria tanto ter aprendido então outras coisas que não a famigerada Educação Moral e Cívica.
          E, antes de me arriscar na literatura, virei matemático. Não sem antes passar por um estágio na engenharia, mas essa é uma outra estória. Só menciono que no exame da FUVEST de 1978 a minha nota de redação foi maior da que a de matemática (não, não gabaritei em matemática), o que ainda surpreende alguns familiares...
          E assim sigo, professor, matemático e escritor, ou ao menos gosto de pensar que sou um pouco de cada um deles.



quinta-feira, 20 de junho de 2019

Janela


Por uma fresta estreita, 
um olhar atento espreita
          o beijo mal dado,
          o amasso apressado,
          o beijo roubado,
o beijo não retribuído,
 a mijada no canto,
          o andar pensativo,
          o andar rancoroso,
          a menina desconfiada,
          a menina atenta,
          a menina sonhadora,
          o carteiro andarilho,
          o casal evangélico,
          o bêbado, o vômito,
          o pião na mão do menino,
          o iPod na mão da menina,
          o tombo do skatista,
          o choro do bebê,
          a conversa das babás,
          o cachorro latindo,
          o aniversário da Nini,
          a irmã gordinha da Nini,
          a calça um tanto quanto apertada do namorado da irmã da Nini,
          a conversa no celular,
          o motoboy,
          o amasso repetido,
          o beijo inconsistente,
          o velho recolhendo o cocô do cachorro,
          a velha resmungando,
          a velha voltando da feira,
          o caminhão do lixo,
          o falar dos lixeiros,
          o choro compulsivo de quem já se perdeu,
amores furtivos,
ledas referências,
mulheres tristes
e cachorros abandonados,
meros enganos,
contos que reconto afinal
          e a vida segue...
          no espreitar sereno
de um olhar atento por trás do
estreito da fresta da janela.




[[Esse conto, escrito em 2011, apareceu em meu livro "Contos&Vinténs" publicado pela Editora A Girafa (2012).]]

quinta-feira, 13 de junho de 2019

iba áles, doze


          - Iba áles a todos.
          O cumprimento do palestrante da noite ecoou no salão cheio. Cheio não era só o salão, cheio, mas de ideias, era também o tal palestrante. Fora ele afinal que defendera a redução dos impostos nos cigarros tentando convencer aos incautos que isso não aumentaria o consumo. É dele também a proposta de que todos deveriam andar armados pois isso, claro, diminuiria a violência.
          - Iba áles - responderam em uníssono, desde os convictos até os ressabiados.
          - Primeiro a gente tira os radares das estradas e ruas - a palestra começava após o imposto silêncio - pois é injusto, totalmente injusto com aquela pessoa de bem que é surpreendida depois de uma curva da estrada por um desses aparelhos malditos e, porisso, vai ter que pagar uma multa. Tiram-se os radares e resolvemos essa injustiça.
          Fez uma pausa, esperando os aplausos pela brilhante ideia. A platéia, porém, não percebeu esse detalhe e continuou em silêncio. O cara da claque tinha faltado naquele dia e todos pareciam meio perdidos em suas reações. Se ainda fosse permitido ligar os celulares em busca de instruções.
          -  Depois será a vez de tirarmos esses tantos alarmes que as casas e lojas têm. Imagina o susto que o sujeito, depois de arrombar a porta dianteira, não tem quando ouve  aquele estridente alarme. Injusto, muito injusto. Imagina se o elemento for cardíaco acima de tudo? Quem se responsabilizaria por sua família se ele tem um treco e morre no exercer de sua função noturna? Além do mais, é preciso respeito com o sono dos outros, ninguém quer acordar no meio da noite com um barulho desses. Alarmes desse tipo serão proibidos sem discussão.
          Um gole d’água antes do próximo projeto.
          - Daí, aproveitamos o ensejo e tiramos todas essas câmeras das ruas. Pra que tantas? Pra que gravar tudo o que acontece nas ruas? Pra que gravar o cidadão de bem treinando tiro ao alvo em um morador de rua? Não que no final das contas fará alguma diferença algum vídeo mostrando esse ato, sabemos todos que armas nas mãos de um cidadão de bem é o perfeito atenuante na justiça nesses novos tempos. Além do mais, quem é que pode garantir que essas imagens foram feitas de boa fé? Mas é constrangedor, não é mesmo? Ver a sua própria imagem saindo de um carro branco e atirando em um morador de rua em pleno Jornal Nacional, quer coisa pior? Ou ver a perseguição à vereadora que seria executada por pais de famílias? Pais de família, caros amigos! Moradores de condomínios de respeito, vizinhos de autoridades. Cidadãos que receberam medalhas por seus feitos. Ninguém precisa disso. Fora com as câmeras das ruas!
          Se alguém achou estranha a lógica do palestrante, não acusou sua estranheza. Tempos de ficar calado, tempos de concordância.
          - E por falar em câmeras, aproveitamos e tiramos todas as dos elevadores. Muito injusto e cruel e traiçoeiro gravar o marido espancando a mulher e, ainda por cima, mostrar isso em rede nacional. Como se diz, em briga de marido e mulher...
          Pausa.
          - Mas, primeiro, a gente tira os radares. Iba áles a todos!

quinta-feira, 6 de junho de 2019

Tempos de Costa, dois.


          Semana passada eu contei sobre um fato ocorrido em meus tempos de estudante no Costa Manso. Coisa puxa outra e logo memórias invadem o meu dia a dia. Não foi o primeiro momento nesses últimos anos em que isso ocorreu. E nem foi a primeira vez que escrevo a respeito daquela época. Menos ainda será a última, espero.
          Alguns anos atrás, eu escrevi “A turma do Costa e o desafio de xadrez”, uma, digamos assim, aventura juvenil e que foi publicada apenas em formato digital pela e-galáxia. Cheia de referências ao Costa e às minhas lembranças dos anos vividos por lá.
          Quem estudou no Costa naqueles anos seguramente se lembra do Prof. Athos (Prof. Porthos no livro), nosso querido diretor. Óculos fundo de garrafa, bigodinho e terno escuro, ele suava às bicas e até perdia a voz, já normalmente rouca, quando lia, nome a nome, a divisão das turmas no primeiro dia letivo. Se isso pode até parecer folclórico, certamente não define a grande figura humana que ele foi e o que representou a todos nós em termos de ética e respeito com os outros.
          Mas não, não se trata de um livro autobiográfico esse “A turma do Costa...”. Se por um lado situo essa minha estória fisicamente no Costa e descrevo as ruas do bairro e as duas casas em que vivi naqueles anos,
nenhum dos personagens que fazem parte da Turma do Costa, o Bebeto e o Marquinhos, me representa realmente, apesar de compartilhar da timidez de um e, acho, da discreta ousadia do outro.
          A Thaís, o Bebeto e o Marquinhos formam a turma do Costa. E por falar nela, a Thaís, a menina sardenta que é também da turma, foi minha paixão de criança/adolescente. É claro que ela nunca soube que eu existia. Mas, de tão platônico que foi, eu tampouco consigo falar muito de como ela era, a não ser de seu jeito meigo, cabelos ruivos e sardenta que era. Sabia-a inteligente, mas nada além disso de sua personalidade. Por isso, a personagem Thaís do livro é totalmente inventada. Como disse, só as sardas é que não.
          Sim fiz parte da torcida de Handebol do colégio; sim, nosso goleiro era bom e chamava-se Pio; e sim cantei muito o canto de guerra da escola:
Costa Manso, existe apenas um,
Igual ao Costa Manso não pode haver nenhum...
(uma das leitoras desse meu livro desconfiou desse canto, dizia que a letra não encaixava em nada que pudesse ser cantado. Mas era esse sim o canto de guerra da torcida e eu, só de birra, não o cantei para ela, que deve estar até agora na dúvida).
          E sim, defendi o Costa jogando xadrez e por conta de minha timidez nunca fui o primeiro tabuleiro do time, era o segundo, às vezes o terceiro. Sorte a minha, pois com isso jogava sempre com jogadores piores dos outros colégios e, ao contrário dos outros integrantes de nossa equipe, sempre ganhava meus jogos. Mas isso é outra estória.
           É certo que alguns professores aparecem com seus nomes reais, mas troquei o nome do colégio que rivalizava com o Costa no Itaim, nada de Aristides de Castro e sim Arquimedes Correia (sei, sei, não precisam dizer, sei que não tenho a imaginação assim tão apurada...).
Tudo isso faz parte desse jogo chamado literatura que nossa mente apronta conosco, nem tudo é inventado, nem tudo são lembranças.
          A Turma do Costa foi pensada para uma outra estória muitos anos atrás, os mesmos personagens, o mesmo entorno. Mas o tempo passou e nunca consegui terminar de escrever. Um dia, vi uma notícia sobre um campeonato de xadrez e achei que seria uma boa primeira aventura para a turma. Ao mostrar uma primeira versão a uns colegas, esses apontaram-me uma situação mal resolvida no final do livro. Reestruturada, gosto muito do resultado final, mas é claro que eu sou suspeito demais para opinar...

          Volta e meia eu retorno àquela estória inicial da Turma do Costa. Quem sabe eu não a finalizo um dia, já que estou nessa fase meio nostálgica?





Para quem quiser ler o começo do livro “A turma do Costa e o desafio de xadrez”, eu publiquei aqui nesse blog os dois primeiros capítulos (para lê-los, clique em primeiro capítulo e segundo capítulo). Quem se entusiasmar, pode conseguir o e-book na Livraria Cultura ou no Amazon quase que ao preço de um par de cafés.