E o que mais ele queria dela? Já não
estava satisfeito consumindo-a com a sua calma, sua total falta de
agressividade? As mãos dela a tremerem e a esperarem dele alguma reação, alguma
vida que fosse em suas reações. Como é que ele pode fazer isso? Ela a dizer o
que pensa e cobrando dele o que é justo, querendo apenas algumas explicações
razoáveis, a explodir de raiva e ele apenas a olhá-la calmamente. Em um dos
longos silêncios que acometia aquela casa vez por outra ela o viu dirigir-se
àquela porta e sair, batendo-a sem se importar nem um pouco com o grito que ela
dera ao perguntar o que é que você ainda quer de mim?
E
vendo aquela porta bater com aquela violência toda ela pensou que isso talvez
simbolizasse a sua vida. Uma porta batida por outra pessoa, a mesma pessoa que
minutos atrás se quedara quieto, apenas a escutar. E ela nunca iria também
aceitar como tudo isso ocorre. Um dia a gente acorda e se olha no espelho e
tudo está como sempre foi, o mesmo olhar, o cabelo despenteado depois de uma
boa noite de sono, às vezes poderiam ter até feito amor, e não há nada de novo
quando se olha no espelho naquela manhã. Mas de repente algo muda, de repente a
briga e a discussão, que, por vezes eles têm, têm um sabor diferente hoje, mas
por que este gosto diferente se nada mudara? E ela pensa e tenta descobrir por
que é que ele não respondera às suas cobranças naquela manhã e ficou ali a
olhá-la, olhar estranho no seu olhar e não, algo mudara em algo que não tem
controle, a bomba explodindo e a fazer mais barulho que a porta que agora bate
com ele do lado de fora pensando no que fazer e a olhar por cima do ombro a
porta que bate e a esconde, esconde aquela pessoa com quem dividiu a cama por
tanto tempo e ela pensa que por tanto tempo dividiu algo com ele e agora tudo
se acaba assim sem uma explicação que fosse, sem nada mais que um olhar a
olhá-la e uma porta a bater. Como isso é possível?
Injusta?
Pensa que não, ou melhor pensaria que não se acaso tivesse condições de pensar
em algo neste momento. Que agora é hora de catar os cacos e saber o que fazer
com eles e é hora também de tentar entender um pouco o porquê de tudo o que
está acontecendo e que parece uma repetição cronometrada de algo que tanto
tempo atrás já se passou com ela.
Tanto
tempo já e agora lhe ocorre comparar os dois acontecimentos. Na primeira vez
ficara receosa, tinha se machucado tanto que temia uma repetição. O receio que
a fez tentar se preparar para uma nova eventualidade, mas hoje viu que não,
sentiu na pele que não, que não estava preparada; era ainda tão frágil quanto
da outra vez. Despreparada para outra quebra, outra explosão, com ele agora do
mesmo jeito, ou quase, que fora com o outro ele, tempos atrás. E fora realmente
uma explosão e tanto cinco anos atrás. Nem queria lembrar agora e não lembrou
com certeza.
E
agora uma porta de madeira os separava. A mesma porta que para ela era uma das
grandes invenções da humanidade pois servia para entrar nos lugares quando se
quer e que para ele, sim grande invenção, servia para se sair dos lugares
quando se precisa.
Sim, a mesma porta pela qual ela
sempre entrava satisfeita, ele agora saía conformado, a mesma porta que impede
que os cacos saiam voando por todos os lados e talvez até chegassem a algum
lugar estranho de seu passado a avisá-la que não, que não se entregasse tanto
ao jogo que ele se repete; os cacos a seus pés, no passado a avisá-la de seu
futuro, mas não havia cacos pois a porta impedia a saída deles assim como
impedia a entrada da folha que fica do lado de fora e que porventura não vai
flutuar sobre a cabeça dele no passado a avisá-lo daquilo que o espera do outro
lado da porta. Do mesmo lado da porta onde ele está agora, sentindo o vento e
se convencendo de que da próxima vez finalmente tudo será diferente. Nada
destas explicações todas a toda hora, nada de soprar o fósforo e ele sentiu
isto no ar e ainda a ouviu gritar o que é que você ainda quer de mim?
Por cima de seu ombro ele viu a porta, que ele não
voltaria a abrir, fechada; tinha acabado de bater. Parou por um instante e
pensou por outro instante. Decidiu-se por fim a voltar e lentamente caminhou em
direção a esta porta e por um momento esqueceu-se da promessa que acabara de
fazer a si mesmo, de que não, de que nunca mais voltaria a abri-la, pelo menos
aquela porta ele não abriria, e de que definitivamente ficaria deste lado dela
que certamente era o melhor e esqueceu-se disso tudo, esqueceu-se de sua recente
promessa e voltou a abrir aquela que jurara nunca mais abrir. Meteu a cabeça
para dentro da casa, por um instante a procurá-la com o olhar ainda não
totalmente acostumado com a escuridão e a achou quieta em um canto, cacos a
seus pés, olhar distante, tentando entender porque é que não tinha controle
sobre isso, a atentar saber como é que as coisas mudam sem avisar e a sentir de
repente um vento e uma luz que vem agora da porta repentinamente aberta e ao
vê-lo lá de pé a olhá-la com o mesmo olhar de antes de ter batido a porta e com
um último esforço ainda pergunta, segunda vez e fingindo segurança, o que é
que você ainda quer de mim? e a esperar um pouco pela resposta, alguma
resposta, qualquer resposta, que ele ainda demorou um instante pensando antes
de dizê-la com o mesmo olhar de sempre.
–
Um sorriso, querida. Só um sorriso…
Mas
um sorriso ele não conseguiu. Não importa, fechou novamente a porta e seguiu o
seu caminho que já não era com ela, que já não era para ela, se é que algum dia
o foi.
Liverpool – São Paulo
fevereiro/89 – maio/92
[[Essa é a segunda e última parte do conto De cacos e folhas e portas que apareceu em meu livro Ledos Enganos, Meras Referências, publicado em 1996 pela Editora Escrituras.]]