quinta-feira, 30 de agosto de 2018

De cacos e folhas e portas - parte 2


            E o que mais ele queria dela? Já não estava satisfeito consumindo-a com a sua calma, sua total falta de agressividade? As mãos dela a tremerem e a esperarem dele alguma reação, alguma vida que fosse em suas reações. Como é que ele pode fazer isso? Ela a dizer o que pensa e cobrando dele o que é justo, querendo apenas algumas explicações razoáveis, a explodir de raiva e ele apenas a olhá-la calmamente. Em um dos longos silêncios que acometia aquela casa vez por outra ela o viu dirigir-se àquela porta e sair, batendo-a sem se importar nem um pouco com o grito que ela dera ao perguntar o que é que você ainda quer de mim?
            E vendo aquela porta bater com aquela violência toda ela pensou que isso talvez simbolizasse a sua vida. Uma porta batida por outra pessoa, a mesma pessoa que minutos atrás se quedara quieto, apenas a escutar. E ela nunca iria também aceitar como tudo isso ocorre. Um dia a gente acorda e se olha no espelho e tudo está como sempre foi, o mesmo olhar, o cabelo despenteado depois de uma boa noite de sono, às vezes poderiam ter até feito amor, e não há nada de novo quando se olha no espelho naquela manhã. Mas de repente algo muda, de repente a briga e a discussão, que, por vezes eles têm, têm um sabor diferente hoje, mas por que este gosto diferente se nada mudara? E ela pensa e tenta descobrir por que é que ele não respondera às suas cobranças naquela manhã e ficou ali a olhá-la, olhar estranho no seu olhar e não, algo mudara em algo que não tem controle, a bomba explodindo e a fazer mais barulho que a porta que agora bate com ele do lado de fora pensando no que fazer e a olhar por cima do ombro a porta que bate e a esconde, esconde aquela pessoa com quem dividiu a cama por tanto tempo e ela pensa que por tanto tempo dividiu algo com ele e agora tudo se acaba assim sem uma explicação que fosse, sem nada mais que um olhar a olhá-la e uma porta a bater. Como isso é possível?
            Injusta? Pensa que não, ou melhor pensaria que não se acaso tivesse condições de pensar em algo neste momento. Que agora é hora de catar os cacos e saber o que fazer com eles e é hora também de tentar entender um pouco o porquê de tudo o que está acontecendo e que parece uma repetição cronometrada de algo que tanto tempo atrás já se passou com ela.
            Tanto tempo já e agora lhe ocorre comparar os dois acontecimentos. Na primeira vez ficara receosa, tinha se machucado tanto que temia uma repetição. O receio que a fez tentar se preparar para uma nova eventualidade, mas hoje viu que não, sentiu na pele que não, que não estava preparada; era ainda tão frágil quanto da outra vez. Despreparada para outra quebra, outra explosão, com ele agora do mesmo jeito, ou quase, que fora com o outro ele, tempos atrás. E fora realmente uma explosão e tanto cinco anos atrás. Nem queria lembrar agora e não lembrou com certeza.
            E agora uma porta de madeira os separava. A mesma porta que para ela era uma das grandes invenções da humanidade pois servia para entrar nos lugares quando se quer e que para ele, sim grande invenção, servia para se sair dos lugares quando se precisa.
            Sim, a mesma porta pela qual ela sempre entrava satisfeita, ele agora saía conformado, a mesma porta que impede que os cacos saiam voando por todos os lados e talvez até chegassem a algum lugar estranho de seu passado a avisá-la que não, que não se entregasse tanto ao jogo que ele se repete; os cacos a seus pés, no passado a avisá-la de seu futuro, mas não havia cacos pois a porta impedia a saída deles assim como impedia a entrada da folha que fica do lado de fora e que porventura não vai flutuar sobre a cabeça dele no passado a avisá-lo daquilo que o espera do outro lado da porta. Do mesmo lado da porta onde ele está agora, sentindo o vento e se convencendo de que da próxima vez finalmente tudo será diferente. Nada destas explicações todas a toda hora, nada de soprar o fósforo e ele sentiu isto no ar e ainda a ouviu gritar o que é que você ainda quer de mim?
         Por cima de seu ombro ele viu a porta, que ele não voltaria a abrir, fechada; tinha acabado de bater. Parou por um instante e pensou por outro instante. Decidiu-se por fim a voltar e lentamente caminhou em direção a esta porta e por um momento esqueceu-se da promessa que acabara de fazer a si mesmo, de que não, de que nunca mais voltaria a abri-la, pelo menos aquela porta ele não abriria, e de que definitivamente ficaria deste lado dela que certamente era o melhor e esqueceu-se disso tudo, esqueceu-se de sua recente promessa e voltou a abrir aquela que jurara nunca mais abrir. Meteu a cabeça para dentro da casa, por um instante a procurá-la com o olhar ainda não totalmente acostumado com a escuridão e a achou quieta em um canto, cacos a seus pés, olhar distante, tentando entender porque é que não tinha controle sobre isso, a atentar saber como é que as coisas mudam sem avisar e a sentir de repente um vento e uma luz que vem agora da porta repentinamente aberta e ao vê-lo lá de pé a olhá-la com o mesmo olhar de antes de ter batido a porta e com um último esforço ainda pergunta, segunda vez e fingindo segurança, o que é que você ainda quer de mim? e a esperar um pouco pela resposta, alguma resposta, qualquer resposta, que ele ainda demorou um instante pensando antes de dizê-la com o mesmo olhar de sempre.
            – Um sorriso, querida. Só um sorriso…
            Mas um sorriso ele não conseguiu. Não importa, fechou novamente a porta e seguiu o seu caminho que já não era com ela, que já não era para ela, se é que algum dia o foi.

            Liverpool – São Paulo
            fevereiro/89 – maio/92




[[Essa é a segunda e última parte do conto De cacos e folhas e portas que apareceu em meu livro Ledos Enganos, Meras Referências, publicado em 1996 pela Editora Escrituras.]]

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

De cacos e folhas e portas - parte 1


            Por cima de seu ombro ele olhou rapidamente e ainda teve tempo de ver a porta bater e ainda escutou o barulho que as portas gostam de fazer quando batem apressadas e repentinas. Aquela imagem, rápida, ainda ecoou em sua mente por um tempo e foi se encontrar com outra imagem, ao mesmo tempo igual e diferente, atual e longínqua. Outra porta mas a mesma pessoa saindo, outras pessoas do outro lado da porta mas o mesmo olhar por cima do ombro, a mesma calma, a mesma falta de sorriso nos lábios. O mesmo conformismo.
            As duas imagens intercalaram-se em sua mente ainda por algum tempo, ainda por aquela imensidão de instantes que sua cabeça levou para parar de espiar por sobre o ombro e virar para a frente. E pensou talvez que esta imagem poderia ser simbólica. Simbolizava a sua vida. Símbolos, por que não?
            Por cima de seu ombro pôde ver finalmente que mais uma vez algo em sua vida terminava. Terminava de uma maneira implacável e dura, mas lenta. Aliás, nada em sua vida terminava abruptamente: era sempre um fim lento e doloroso como o cair de uma folha machucando o ar em que passa e que quando chega ao chão, depois de uma longa e deslizante flutuação, já cortou tanto o ar, já machucou tanto que já não se tem mais a esperança de que o chão chegaria algum dia. Finalmente o chão chega, estamos certos disso, mas nem por isso aceitamos facilmente esse fato, tão acostumados estávamos com o doce flutuar da folha. Quando a folha finalmente chega ao chão ainda temos que nos certificar de que é verdade, ainda gastamos um tempo a nos convencermos de que isso de fato ocorrera, como se houvesse alguma eventual possibilidade de a folha seguir flutuando eternamente no ar.
            A folha já no chão e ainda não se sabe que tudo acabou, e só quando se bate a porta, e só quando se olha o passado por cima do ombro é que se tem a certeza de que não dá mais para seguir vivendo desta maneira, que aquela casa já não é mais a sua e que não se deve insistir, nem uma vez que fosse, em viver com eles, tempos atrás, ou com ela, que com ela já não dá mais pra viver, como agora ou como hoje.
            E mesmo que o olhar por cima do ombro fosse o mesmo, e não o é definitivamente, a batida da porta é diferente. A primeira vez com aquela impaciência de quem sabe de tudo, de quem tem a ingênua certeza de que algo o espera do outro lado. E a segunda com a impaciência de quem quer ir logo embora para algum lugar onde possa pensar e relembrar e tentar descobrir em que errara. E recomeçar.
            O passo lento e a certeza de que não voltaria a entrar por aquela porta que já bateu e acertar as arestas como em tantas vezes fizera, a se explicar como se a pedir desculpas, sim e tantas vezes o fizera com aquela mania que tinha, que ainda tem? de tentar preservar o que já não dá mais para preservar. Tantas vezes ele já se explicara a ela e tantas vezes a folha caindo, machucando o ar, que sentia que talvez aquilo pudesse seguir indefinidamente, mas na realidade não, o chão chega e a folha tem de parar e o chão pára a folha e o chão nada mais é que as atitudes que hoje toma, nada mais é que as mudanças que se nota algum dia quando se acorda e se olha no espelho que sim, a barba por fazer, sim os olhos vermelhos pela insônia, que sim, uma espinha madura no rosto apesar da idade e que sim, que finalmente chegou o chão. Que finalmente chegou o dia de se tomar alguma atitude definitiva. Do chão não passa e não passa mais pela garganta todas aquelas explicações que ela exige e que todos exigiam e que do chão não passa mais aquelas cobranças todas que ele próprio fazia a ela, como é possível viver desta maneira? e que hoje, sim, a barba por fazer, já não tem mais nenhum sentido. Do chão não passa o jogo social que tanto tempo os mantivera juntos a passarem, às vezes rindo e às vezes não, pela mesma porta que agora bate violentamente às suas costas.
            Teria sido cruel com o pai? Talvez, mas fora acusado por ele de tantas coisas e tudo o mais e de tal jeito que parecia estar expulsando-o de casa e ele não aguentou e foi-se de lá no mesmo instante. Ou melhor, a pedido da mãe, ainda aguentou almoçar lá naquele dia. Com o seu eterno otimismo maternal ela achava que tudo se resolveria. Era só uma questão de sentarmos todos juntos à mesa, talvez até passassem por nossas mentes os belos momentos em que  almoçamos ou jantamos juntos nestes anos todos e quem sabe, por um passe de mágica, tudo se encaixaria, tudo se resolveria e nos abraçaríamos chorando de remorsos e alegria. Ê, vida! Mas não, nada se resolve assim tão ingenuamente e de fato nada se resolveu depois daquele interminável e estranho e silencioso e deprimente almoço junto à família. Nada a fazer, ainda pensou, com a garganta meio que entalada pelas lágrimas de raiva que segurava e principalmente pelas ervilhas, excessivamente salgadas naquele dia.
            Nada resolvido, ao menos na ótica de sua mãe, e ele se foi sem dizer palavra, batendo a porta. Mas antes de ir, aquele interminável almoço, a folha a cair, deu-lhe pela primeira vez a medida de que nada iria terminar na sua vida como uma bomba que explode e arrasa, pois ele não teria a coragem de fazê-la explodir. Os outros montavam a bomba com o devido esmero, ajustavam cuidadosamente o pavio e lhe davam o fósforo já devidamente aceso. Só a ele, porém, competia fazê-la explodir. Mas, qual-o-quê, ele soprava o fósforo como o vento que agora mantém a folha no ar, apagando-o e mantendo-a flutuando.
            Injusto? Se pensasse um pouco mais acharia que sim. Mas não queria pensar nisso agora que já saíra definitivamente de casa e a deixava chorando na sala do outro lado da porta a tentar entender o que é que aquela espinha no rosto dele teria a ver com a sua súbita mudança e nunca saberia, nunca descobriria o porquê, por que é que ele desta vez ficara calado no seu canto a olhá-la, apenas a olhá-la e não fizera nada mais que olhá-la bem em seus olhos enquanto ela fazia os seus discursos e cobranças. Sua atitude passiva a perturbou tanto e de tal maneira que ela não conseguia nem se concentrar em seus argumentos e ela tinha toda a razão de cobrar dele tudo aquilo que agora cobrava, como em tantas outras vezes já cobrara, e a sentir-se cobrada também, por que não? pelas neuroses dele e sentiu-se estranha ali naquela sala a tentar entender as reações dele que lhe eram estranhas hoje e a pensar que mais uma vez perdera o total domínio da situação, por mais uma vez algo acabara e sua vida como uma grande explosão, algo abrupto e doloroso, sem ter o mínimo controle sobre nada.



[[Esse conto, De cacos e folhas e portas, apareceu em meu livro de contos Ledos Enganos, Meras Referências, publicado em 1996 pela Editora Escrituras. Vou publicá-lo aqui dividido em duas partes]]

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Maioridade


            O meu segundo livro de contos alcançou a maioridade nem faz muito tempo e eu, em um momento de relembranças próprio dessa época do ano, resolvi revisitá-lo e venho publicando-o aos poucos aqui em meu blog. Os contos mais curtos do Ledos Enganos, Meras Referências já apareceram aqui e agora estou publicando os de tamanho intermediários. Para evitar os textões, seguindo o conselho do Thio Therezo, tenho usado o chamado Jack´s method, e eles aparecerão em partes ao longo de duas ou três semanas.

            Meu livro inicial, o Contos que conto, tinha sido publicado pela Editora Estação Liberdade como prêmio na categoria contos da V Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, isso no pré-histórico ano de 1991. A coleção com os (doze) livros premiados contou com o belo trabalho editorial do Jiro Takahashi. Ano passado eu publiquei uma segunda edição desse livro, mas apenas no formato eletrônico e com uma nova capa feita pela Ayssa Bastos (disponível pela e-galaxia).

   
O prêmio da Bienal Nestlê me animou a escrever com mais frequência. Um dos contos dessa fase acabou sendo escolhido para aparecer na VIII Antologia de Contos Alberto Renart e, com isso, fiquei conhecendo o editor Raimundo Gadelha que me convidou a publicar um livro de contos por sua editora Escrituras. Publiquei então o Ledos Enganos, Meras Referências, no ano 1996. Com o seu usual cuidado com a produção editorial acabei publicando com o Gadelha não só esse livro mas também os meus dois livros de contos seguintes: Gambiarra e outros paliativos emocionais (pelo selo Arte PauBrasil, 2007) e Contos&Vinténs (pela Girafa, 2012).
E, como disse, o Simetria (nas últimas três semanas). Esse conto tem um valor especial para mim, não só pelo pequeno destaque que teve e que me abriu portas, mas também porque significou uma mudança sutil em minha escrita, coisa que só percebi muito tempo depois. Várias mudanças, algumas sutis e outras nem tantos, se seguiram e sigo tentando novos caminhos. Romance e livros infanto-juvenis depois eu volto aos contos e espero logo publicar um novo livro nesse gênero. Projetos não faltam, um par de livros infantis incluídos.
Mas, por ora, seguirei revisitando os contos do Ledos Enganos, intercalados com escritos novos. Nas próximas duas semanas sairá o conto De cacos e folhas e portas e em seguida o conto Gato. Depois, veremos...




quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Simetria - parte III

          Hoje eu acredito que o quadro que ela queria pintar esteve o tempo todo muito claro em sua mente. Só que ela não conseguiu transcrevê-lo em cores sobre aquela tela. E isto foi exasperando-a apesar de meu incentivo, às vezes, e também de meu desincentivo inconsciente, em outras. No fundo não aceitava o fato de não podermos ter uma vida normal sem estas afetações todas dela que insistia e muito em fazer tal quadro. Não acho razoável que alguém se destrua a esse ponto. Quando disse isso a ela, ela chorou sentidamente e não disse palavra. Como pude ser tão cruel? Senti-me o mais imbecil dos seres humanos, ainda mais por causa do olhar repressor deste animal irracional que dividia com a gente esta casa. 
          Ocupei-me por horas na difícil tarefa de desdizer o que tinha dito, em desfazer o já feito, em pedir desculpas e afins. No fim, convenci-a a não se jogar pela janela (e nem me jogar tampouco) e, mais algumas horas, nos amamos longamente, sempre às vistas de um par de olhos vidrados e ameaçadores no escuro, que esperava sempre nosso último suspiro antes de assumir o seu posto na cama e dormir e ronronar e sonhar, se é que os gatos também sonham quando dormem, e soltar seus pelos e me irritar aos extremos com seu desdém e interesse. 
          Um dia, outra quinta-feira, ela quebrou vários pratos, espalhou pela casa as tintas de seu único e inacabado quadro e desapareceu. Isso já acontecera antes e ela voltara logo depois, calada e sem explicações. Não me preocupei de fato. 
          Três dias depois encontraram-na morta na Marginal. Deprimido mas prático, fui ao IML reconhecer o corpo (é tão difícil chamá-la de corpo). Não bastasse toda esta situação e o infeliz do rapaz que me atendeu insistia que insistia em me contar todos os detalhes, todos os escabrosos e sangrentos detalhes. Não queria ouvir mas o cara insistia, excitava-se todo com isto, por que será que tanta gente gosta tanto destas estórias?
          A mim, não me excitam as doenças e as mortes, a mim não interessa saber como as pessoas morrem, principalmente os amigos. Principalmente ela. O simples fato de ela ter morrido já foi suficientemente terrível para mim. 
          Demorei, e muito, a voltar a viver normalmente, a ter uma vida social. Nestas horas, perdemos um pouco de nossas próprias referências. Meti-me no trabalho e só. Às noites passávamos os dois, gato e eu, cada qual em seu canto a pensarmos e recordarmos. Só um mês depois arrumei a bagunça de tintas que ela deixara em meu ex-canto. Ainda outras cinco quintas-feiras para que eu levasse todo aquele material, tripé e pincéis e tintas, para o quartinho dos fundos onde esperou conformado sete ou oito quintas-feiras mais para ir definitivamente para o lixo. Foi só depois que o gato um dia entrou no quarto, derrubou o tripé e derramou as tintas que eu resolvi que afinal já era tempo; tempo de me livrar desta tralha toda, incluindo o gato e voltar à vida anterior. Já muitas quintas-feiras se passaram e é preciso reagir. 
          Mas do gato não pude me livrar facilmente. Como não me agrada muito churrasquinho de gato resolvi esquecê-lo em um dos cantos quaisquer desta cidade, que canto é o que não falta nela. Decisão tomada, a consumação no entanto foi sendo adiada e adiada. Temos muito a aprender com nossas atitudes. Um dia choveu, em outro estava cansado, mais um e tem um jogo interessante na TV e logo o gato já não incomoda mais, ele só me lembrava a Helena de vez em quando, nestes momentos em que se deitava em um canto e me olhava distante. 
          Nada como uma quinta-feira atrás de outra para nos conformarmos e esquecermos de tudo. Até um dia em que trouxe uma amiga para dormir comigo, tanto tempo desde a Helena…
          Fiz um dos pratos que Helena me ensinou e impressionei um bocado. É preciso; na primeira vez sempre é preciso impressionar. Dormimos juntos, nos amamos com um gosto amargo na boca. Não sei porque pensei que estivesse traindo algo. Mas nos amamos assim mesmo e, acho, não decepcionei. 
          Dormimos abraçados e eu sonhei com um gato, se é que é possível se sonhar com um gato. Dois olhos imensos de gato a me seguir por onde é que eu fosse, a me seguir e perseguir, negros olhos. Um gato que me olhava e dizia o tempo todo simetria. A cada passo meu, ouvia simetria, virava-me e lá estava ele focando-me, ameaçando-me. 
          – Simetria – disse-me por fim e pulou em cima de mim. Acordei exaltado: dois olhos se abriram curiosos no escuro e logo depois voltaram a se fechar e dormiram.
          Olhei em volta e ela já tinha ido. Um bilhete me dizia que tinha sido ótimo, que deveríamos nos ver de novo e blá-blá-blá e que não podia ficar mais mas não queria me acordar e tchau e um beijo. 
          Um pesadelo é um pesadelo e ponto final. Volta-se a dormir mas ele não sai da cabeça. Dormi bem, no entanto. Só fui acordar com alguém me arranhando a sola do pé. A gostosa sensação de algumas unhas me arranhando a sola do pé para me acordar. 

São Paulo, 1992 - 1993



[[ Esse conto, Simetria, apareceu na VIII Antologia Alberto Renart, 1995 e, depois, em meu livro de contos Ledos Enganos, Meras Referências, publicado em 1996 pela Editora Escrituras. As duas primeiras partes foram publicadas nas semanas anteriores e, hoje, aparece a última parte. ]]

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Simetria - parte II

          Após qualquer quinta-feira, inexoravelmente seguirão outras e outras mais se seguirão depois numa rapidez estonteante e talvez seja por isso que certas pessoas insistem em dizer que o tempo voa. De fato, já algumas dezenas de quintas-feiras se passaram desde aquela que descrevi acima, desde aquela primeira em que dividimos este quarto. Dezenas e dezenas e logo logo uma centena e cá estamos a recordar tudo aquilo. 
          A recordar que pouco a pouco fui cedendo um espaço meu a Helena e a este gato também. Antes deles, vivi sete anos sozinho, desde o meu primeiro salário. Um espaço em minha vida, duramente conquistado e que via ir por água abaixo frente ao ataque frontal e indiscutível dela e dele. De seu gato que pouco a pouco foi ocupando um cantinho em minha (nossa) cama. E logo a imagem noturna seria os três a dormirem, roncarem e ronronarem juntos, em um estranho, mas agradável, reconheço, uníssono. 
          Hoje eu sei que o gato dormindo em nossa cama foi algo que cedi a ela e não a ele. No começo sempre cedemos muito e só depois nos damos conta do estrago feito em nossas vidas. 
          Fomos vivendo, satisfeitos os três, o nível gastronômico em alta pois Helena é uma grande cozinheira. Foi só com o tempo que percebi que Helena tinha lá suas depressões. Sou muito desligado dessas coisas e, além disso, tinha muito trabalho por aquela época. Nem sempre tudo acontece da maneira que deve ser, nem sempre percebemos o que deve ser percebido. Vez por outra eu a encontrava em um canto a olhar o infinito, seu olhar a passar por mim como se eu não existisse e atravessar tudo à sua frente até chegar a algo que não distingo  muito bem onde é que é, algo bem longínquo. Olhar assustador, pelo menos a mim que não conheço muito estas coisas, que me contento com o chão a chão de tudo. 
          Na primeira vez afaguei seus cabelos e ela voltou rapidamente de onde quer que estivesse à minha companhia, àquela sala e me sorriu constrangida, levantou-se e me deixou lá sozinho. 
          – O que foi? – perguntei-lhe depois.
          – Não sei.
          Sua resposta direta foi tão forte que nem prossegui no assunto, melhor esquecer tudo e seguir vivendo. Mas percebi com o tempo que aquele seu olhar não era para mim, não era para ninguém a não ser ela própria, a não ser, talvez eu nunca tenha a certeza, também a seu gato. 
          Um dia brigamos. Uma briga curta, mas agressiva, daquelas em que dizemos coisas que não queremos dizer, em que cutucamos as feridas alheias. Briga curta e logo cada um foi para o seu canto magoado. Agora ela dorme tranquila, ressona tranquilamente. E eu a velo. Tenho medo. Medo de que isto se repita, que nos acabemos pouco a pouco nestas picuinhas do dia-a-dia, neste emaranhado de pequenas agressões em que, às vezes, se transformam os relacionamentos. Acordei com ela me arranhando a sola dos pés. Ainda gastei alguns instantes para percebê-la lá a me olhar. Tinha um olhar baixo e distante. Abracei-a daquele jeito todo especial. 
          Foi com grande alegria, confesso, que um dia a vi chegar em casa exultante, meio que tropeçando no farto material de pintura que trouxe junto. Perdi mais um canto, um canto onde gostava de ficar lendo e escutando música, mas não reclamei. Tal foi o seu encantamento ao desembarcar em meu escritório, armar o tripé e espalhar por cima de minha mesa os potes de tinta e pincéis que nem pude, nem quis é bem verdade, reclamar um tantinho que fosse. 
          A ocupação foi total e, ao que pareceu de início, permanente. Ficava lá horas a rabiscar e planejar o seu quadro. Seu olhar já não me assustava mais, como poderia? É certo que ainda se deprimia às vezes mas destas vezes tornava-se faladora, contava-me seus sonhos e seus projetos frustrados, tentava me convencer de sua total impossibilidade de sequer pintar um quadro que fosse. O fato de eu também não poder fazê-lo, argumentava eu às vezes, não era para ela sequer um consolo. 
          Em todo caso, esta foi a melhor época de nosso relacionamento, por que não dizê-lo de minha vida. Nunca tive destas preocupações ditas psicológicas nem sou um bom ouvinte mas acho que me saí bem em meu convívio com ela. 


[[ Esse conto, Simetria, apareceu na VIII Antologia Alberto Renart, 1995 e, depois, em meu livro de contos Ledos Enganos, Meras Referências, publicado em 1996 pela Editora Escrituras. A primeira parte foi publicada na semana passada e a última aparecerá na próxima quinta-feira. ]]