Resolução de ano novo:
Nunca mais desejar um ano inesquecível...
Feliz 2K21 a todos!!!
Faz um tempinho isso, foi numa destas tantas noites de Natal a que somos atropelados anualmente. O Thio Therezo, sei disso porque ele me contou um dia, adorava estas noites. Não tanto pelas conversas que normalmente as povoam, nem tanto pelo silêncio imposto para se assistir a missa do galo pela TV, nem tanto pelas trocas de presentes, sinceros ou hipócritas ou pelos parentes que só vemos esporadicamente. Nada disso, mas sim porque mamãe, sua irmã, fazia o famoso lombo assado com farofa, creme rosê e purê de maçã.
O Thio
esperava o ano todo por isso, sabíamos todos e, quando chegava, nada o distraia
de seu prazer. Seu olhar era diferente, sua alegria, ele até aguentava as
provocações de meu pai exercendo o costumeiro e legítimo papel de cunhado.
Pois bem,
naquele Natal surgira a história do alinhamento de dois planetas que estaria
afetando o cotidiano e, como sempre são com essas coisas, estaria indicando
tempos melhores, o que, de fato e real, estava sendo cada vez mais raro. Papai
dissertava e dissertava sobre o tal fenômeno sem descuidar de seus olhares ao
Thio. Ele esperava algum tipo de reação do cunhado, afinal de contas o Thio era
um renomado especialista em questões tanto astronômicas quanto astrológicas, tanto
das científicas quanto das divinatórias. Famosas, por exemplo, ficaram as
frequentes consultas do Vaticano a ele para dirimirem dúvidas históricas, o que
incluiu em certo momento, por exemplo, uma cuidadosa revisão do calendário
usado atualmente e que só não foi colocada em prática por conta de obscuros
interesses econômicos.
Mas voltemos
ao alinhamento natalino que tanto empolgava o papai. Já gasto todo o seu
aparente entusiasmo e frente ao silêncio do Thio, papai resolveu se dirigir
especialmente ao cunhado:
- E aí,
Thio, o que me diz?
- Ah? – ele
parecia distraído saboreando o lombo suíno.
- O que me
diz, Thio?
- Esse porco
está divino. Parabéns, mana, você se superou!
- O que?
Você só tem isso a dizer?
- Claro que
não, o purê de maçã, soberbo! Como pode algo tão simples de ser feito ficar tão
bom!
O pai ficou
meio sem palavras frente à reação do cunhado, ainda mais que mamãe se deliciou
frente a tantos elogios e nada que se falasse naquele momento poderia superar aquela carinhosa troca
de olhares entre os irmãos queridos.
Logo, a
missa do galo começou e fez-se o habitual silêncio. O Thio, claro, aproveitou a
paz e repetiu mais uma vez o seu prato natalino. Enquanto um e outro, missa e prato
repetido, eu via o meu pai incomodado com a falta de resposta do Thio. Acabou-se
a missa, vieram os fogos de artifícios vistos da varanda, os abraços e beijos e
a usual confraternização.
Passado este
momento, justamente no pós-jantar, quando a mente e corpo pedem já o seu descanso,
e antes que o pai tivesse a oportunidade de retomar o assunto do alinhamento dos
dois planetas, o Thio comentou:
- A
propósito, falar em alinhamento de dois planetas só supera, em nível de baboseira,
a tal da sensação térmica que os jornais costumam anunciar. Ora, dois planetas
estarão sempre alinhados...
Silêncio se
impôs à preocupação ao que certamente viria.
- ... se ainda fossem três planetas, até que
teria alguma graça, mas dois! Dois?
Mamãe pensou
rápido e propôs abrirmos os presentes do amigo secreto. Mal sabia ela que papai
tinha tirado justamente o Thio e, esse, o papai. Os tais dias melhores tão
euforicamente anunciados pelo alinhamento planetário teriam que esperar ainda um
tempão para entrarem em cena.
Feliz Natal
a todos!
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Como e o que
me lembro no dia a dia são mistérios que nunca consegui decifrar totalmente. Por
vezes, pequenas coisas sem importância me atropelam a mente enquanto que muito
do que gostaria de relembrar permanece escondido de forma inacessível. Mais de
uma vez, por exemplo, antes de retornar a um lugar que sei que já tinha visitado,
nada me vem à mente, mas bastou chegar lá e, de repente, surgem detalhes que
nem imaginava existirem. Ah, se eu virar aquela esquina, tem uma loja de
sapatos; ah, atrás daquela igreja vamos ver um parque com bancos verdes; ah, o
sorvete daquela confeitaria é excelente. Mas esqueço rapidamente muito do
essencial, livros que li e que não me recordo de nada (quando muito, que gostei
ou não), filmes que parecem ser vistos pela primeira vez (mesmo consciente de que
minha memória é muito visual), histórias ouvidas, conversas.
Tenho mínimo controle sobre
este processo mental, o que fazer a não ser resignar-me?
Ontem fui atropelado por uma
lembrança e tento entender o porquê. Talvez nem haja uma razão, talvez tenha
sido apenas um mero sinal do cansaço mental destes dias turbulentos e que leva
a mente a descarregar memórias como se quisesse se livrar delas. Mas, ao
contrário, tive que conviver com a lembrança o dia todo.
Por questões profissionais, na
última década fui inúmeras vezes ao Canadá, Quebec por melhor dizer, Sherbrooke,
cidade a duas horas de ônibus de Montreal, para ser mais específico. Nas
últimas vezes que fui, eu me hospedei em um monastério bem ao lado do campus
universitário, este um pouco afastado do centro da cidade. Uma pequena rodovia
separa, de um lado o campus principal e de outro um campo de prática de futebol
americano também da universidade e que ladeia o monastério. Finzinho da tarde
eu saia da faculdade, andava até aquele final do campus, atravessava a rodovia
em frente ao campo de futebol e seguia por ela, meio que no mato pois não havia
calçada naquele trecho, até chegar ao monastério. E se já estivesse escuro,
escuro estaria. Nada demais, apesar do pequeno desconforto pela falta de
calçada. Por vezes, até parava um pouco para ver o treino da equipe de futebol da
universidade. Nada que merecesse maior atenção pelo que fosse, apenas
relaxamento depois de um intenso dia de trabalho.
Um dia,
escuro estava, percebi uma luz vindo do chão a um par de metros de onde eu caminhava
nesse meu caminho ao longo da rodovia. Aproximei-me e encontrei um celular, um
iPhone, visor quebrado mas com a luz acesa. Olhei ao redor e nada, não parecia
que alguém tivesse acabado de perdê-lo. Não tive dúvidas, peguei o celular e
tentei achar algum contato nele, acabei localizando uma mensagem recente de alguém
e escrevi como resposta que tinha achado aquele celular e queria devolver.
Segui com o aparelho em direção ao monastério mas, antes de lá chegar, recebi nele
uma ligação do suposto dono. Disse onde tinha encontrado o celular e marcamos
de nos encontrar na porta do monastério. Nem demorou muito para chegarem. Na
caminhoneta, duas pessoas, aparentemente o dono e algum amigo. Mas não desceram
do carro, eu entreguei o celular e ele começou a manusear o celular sem sequer
agradecer. Conversaram entre si e me ignoraram totalmente. Como já tinha feito
o que tinha em mente que era devolver, despedi-me e, de novo ignorado, entrei no
monastério. Ainda olhei antes de fechar a porta e lá estavam eles ainda conversando.
Extraordinário?
Não. Mas me fez pensar, depois de um par de anos, naquilo que ocorreu. Foi tudo
tão instintivo de minha parte, mas teria eu agido do mesmo jeito se fosse no
Brasil?
Sem querer entrar em uma
infrutífera discussão sociológica, acho que eu teria ignorado, por aqui, o
celular e o deixaria por lá, seguiria em frente sem remorsos, pois como eu
explicaria a posse dele? Aqui somos todos culpados, não há como fugir disso,
qualquer insinuação ou suspeita contra você significa condenação e
provavelmente se eu marcasse um encontro para devolver o aparelho, o seu dono viria
acompanhado da polícia/promotor/juiz/carcereiro ou, pior, da milícia (que é o mais
provável nestes tempos pós-golpe). Eu seguramente teria problemas em me explicar,
não teria credibilidade eu dizer que tinha achado a aparelho jogado ao chão. Somos
todos culpados, é a regra geral. Aqui, acho, eu simplesmente ignoraria o
celular e iria embora, não por não querer devolvê-lo a seu dono de direito mas
por medo. Tenho medo, sim, do Brasil que estão construindo ao nosso redor.
Mas, lá, não
tive estas dúvidas. Por outro lado, senti um gosto amargo na boca depois do
desfecho, nem um agradecimento recebi, e nem esperava mais do que isso, mas
isso sim esperava. Talvez minha ingenuidade tenha me levado a crer que, pela
aparente segurança que sempre senti por lá (apesar do stress e cara feia dos
que cuidam da entrada no país), achava que não estaria sendo também julgado. A
impressão que ficou foi que, também lá e de seu jeito, eu tinha sido julgado. Tudo
correu bem, é certo, e, acredito, ao me encontrarem, os dois amigos perceberam
que eu era um mero estrangeiro com sotaque carregado que encontrara o celular,
que não teria tido nada a ver com o seu sumiço e que só queria realmente
devolvê-lo. Mas a total falta de empatia naquele momento me fez tirar conclusões
que, por falta de comprovações, guardo para mim. Esse o motivo do gosto amargo
na boca naquele momento e que retornou junto às lembranças de ontem.
As coisas
não se repetem, por isso não preciso refletir muito se agiria igual em situação
similar ou não. Tiramos nossas conclusões, aprendemos algo, e seguimos em
frente.
Mas que é
estranho ser incomodado com algumas lembranças que não deveriam importar, isto
é lá verdade. Escrevo para me livrar delas e tomara que dê certo desta vez.
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Não é segredo
algum que as relações do Thio Therezo com a República de Hygina já duram
décadas e décadas. Eu particularmente não entendo o tempo que ele gasta naquela
república vizinha, visto a grande diferença que existe, moral e política, entre
o Thio e aqueles habitantes. Mas, parece, o Thio se empolga em entender como as
aberrações daquela república podem acontecer, um estudo sociológico, digamos
assim. Um país baseado em acordos esdrúxulos e traições sistemáticas, na sua
opinião, deve merecer sim teses e teses e mais teses. Mesmo assim, haja
paciência.
Pois bem,
tempos atrás, o Thio foi, mais uma vez, convidado para ministrar uma palestra
na abertura do “ano jurídico” daquela república. Seguia o mês de maio, o que
significava que finalmente a indústria jurídica iria começar a funcionar e
teriam quase dois meses de trabalho antes do próximo recesso. O Thio, então,
preparou-se para falar aos ministros do MTF (Maioral Tribunal Federal). Ele
queria, no entanto, falar aos maiorais algo que não fosse apenas uma usual
retórica jurídica, pois, sabia que por maior que fosse o seu conhecimento nesta
área, reconhecido internacionalmente que era, não conseguiria competir com
eles, invencíveis seres que a ninguém precisam se justificar.
Lembrou-se de
uma história e resolveu focar sua fala nela. Décadas atrás, em um de seus
inúmeros contatos com José Saramago, discutiram um livro que o escritor
português estava começando a escrever. Algo ainda meio vago, mas centrado na
história do cerco de Lisboa. As inúmeras conversas que os dois tiveram tomando
vinho tinto e cercados de beleza naturais e artificiais levaram, por fim, o
Saramago a centrar o enredo daquele livro em torno da palavra Não que, acrescentada
indevidamente em um texto, modificaria a relatada história da expulsão dos
muçulmanos de Lisboa no século XII.
Não que o Thio
tivesse pensado em compartilhar esta história com os maiorais apenas pelo
prazer da narrativa ou curiosidade histórica, o que talvez eles até apreciassem
em última instância (mesmo não sendo, obviamente, fãs do escritor português,
muito à esquerda para eles). Não, não foi isso, o Thio achava que essa
introdução poderia abrir caminho para comentários outros que tinham mais a ver
com a direção à qual a indústria jurídica de Hygina se enredava por aqueles
tempos.
Não muito
tempo antes daquela fala, os maiorais tinham, por exemplo, decidido que a
expressão constante na Constituição “o ensino público é gratuito”
poderia ser simplesmente interpretada como “o ensino público pode ser
gratuito”, o que abriu a possibilidade de se cobrar taxas escolares, o
imperativo inequívoco virando uma possibilidade do contrário. Detalhes
linguísticos, não? Muitos podem até achar estranha tal interpretação, mas a
prudência impera, ainda mais em se tratando de decisões últimas e
inquestionáveis, pois naquele ordenamento jurídico não há quem julgue os
julgadores e ai daqueles que os contestem. É a palavra de um maioral e ponto
final.
Pior tinha
sido a decisão que o MTF da República de Hygina teve com relação a uma outra
questão explicitamente escrita na Constituição e que interpretada e
reinterpretada ao sabor das conveniências teve, ao longo de três confusos anos,
variantes que, como consequência, impediram, na prática, a candidatura à
presidência de um sujeito mal visto pelas elites locais. Lembro do Thio
gargalhar-se, apesar do trágico momento, quando um maioral, o último a votar e
com o placar empatado, justificou que votava com a maioria dos colegas. A
retórica sempre a serviço, sempre a serviço. Que o direito não é ciência exata,
sabemos todos, mas haja inexatidão!
Thio Therezo,
hoje, se arrepende de ter feito aquela palestra, ter focado seus argumentos em
um texto literário em que a inclusão de uma palavra muda todo um contexto
histórico. Ele acha que sua fala pode ter sido mal interpretada e incentivado
os maiorais a usarem como desculpa acadêmica para uma extrema liberalidade linguística.
Mas era ficção
o que Thio tinha narrado, cara, não o artigo de uma lei!
Esses dias, o
Thio acompanha a decisão do MTF a respeito de uma nova interpretação de um
artigo da Constituição que proíbe sem sombra de dúvida a reeleição nos
cargos de presidente do poder legislativo daquela república. O Não
podendo virar Sim. Há alguns, com algum tipo de pudor, que tentam, em
seus usuais arroubos retóricos, transformar um Não em um Talvez Mas
Com Tendência de Sim. Vejam bem, data vênia, nem tudo que está na Constituição
tem que ser seguido, há as leis que a gente gosta e há as que, dependendo do
momento, não precisamos seguir, há as leis explicitamente escritas mas que já
tiveram, ao ver do MTF, o seu prazo de validade vencido e portanto devam ser
descartadas. Há de tudo, para quem detém o poder ilimitado, não há limites.
Mas há! E não
é que o ridículo das interpretações chegou a tal ponto que mesmo aliados dos
acordos previamente selados preferiram na última hora trair seus companheiros a
manter a aliança e votaram que um Não significa apesar das tentativas
simplesmente Não. Ao final, a imaginativa interpretação do Não
pelo Sim foi por água abaixo, para desconsolo de muitos.
O Thio sempre achou que deve ser muito divertido trabalhar em certos lugares. Um mesmo poder refazendo as leis e posteriormente julgando os casos de acordo com as novas interpretações é, a rigor, o desejo de consumo de tanta gente por aí.
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Se há um conselho de autoajuda que o Thio Therezo não suporta ouvir é o tal do “sair de sua zona de conforto”. E todos em casa sabem disso, principalmente o meu pai, seu cunhado, que tanto se empenha em deixa-lo irritado.
- Mas Thio,
você tem que sair de sua zona de conforto – o meu pai disparou inesperadamente logo
após um, até então, calmo almoço de domingo. Antes da provocadora fala, a
conversa tinha girado em torno de fatos amenos, o avanço da extrema direita mundial,
questões de ordem pandêmicas e o campeonato brasileiro. Mas bastou o pai vestir
seu sorriso irônico e falar isso para, em seguida, prevalecer nossas caras
preocupadas e o incômodo silêncio.
Inicialmente,
o Thio não se deu por rogado, sorriu e tentou mudar a conversa para algo menos
tenso, puxou um assunto sobre intolerância religiosa em civilizações neonazistas.
Qual-o-quê, o pai não resistiu em insistir em sua provocação.
- Mas, Thio,
você acha que tem que ficar realmente na sua zona de conforto?
Pronto, almoço
arruinado. Não que o Thio se prestasse dessa vez a responder à altura ao meu
pai como em tantas vezes anteriores fizera, é bem provável que os exercícios de
yoga que o Thio vinha fazendo às escondidas tenham surtido efeito desta vez. Ele
apenas sorriu, pediu desculpas por conta de um mal esclarecido compromisso que
tinha naquela tarde e saiu dispensando até o irrecusável café que minha mãe costumava
fazer para finalizar as refeições dominicais. Mas o almoço estava arruinado e o
único que parecia sentir prazer nisso era o meu pai.
Eu já sabia
de cor o que o Thio responderia caso quisesse entrar no pantanoso seara de ditados
ridículos e inúteis. Por qual razão alguém iria querer sair espontaneamente de
sua zona de conforto? Qual o problema de se sentir confortável afinal? E
concluiria exasperado com um “eu gosto muito da p.... da minha zona de
conforto, não há nada de errado nela e vão perturbar outros iguais a vocês”. Nada
disso, porém, iria reduzir o grau de stress que se seguiria caso ele resolvesse
retrucar as provocações dos autoajudistas de plantão. Quem de autoajuda se alimenta
não aceita nada que não seja outros conselhos desta nobre arte. Essa é, inexplicavelmente,
a zona de conforto de quem acredita que todos precisam sair de suas zonas de
conforto, vai entender!
Mas o pai
não se deu por vencido naquele domingo e, passados alguns dias, convidou um amigo
para nos visitar sabendo que o Thio iria estar também presente. E esse amigo
contava as maravilhas de suas aventuras, e a cada duas frases, incluía um “é
preciso sair de sua zona de conforto” para justificar suas atitudes. Seus
olhos, claro, brilhavam, iluminavam, por assim dizer, as supostas vidas
obscuras de seus interlocutores. E sorria o sorriso dos supremos.
O Thio
escutava a tudo calmamente, parecia estar com seu pensamento longe enquanto o
pai dava corda ao amigo que contava e contava aventuras, como se fosse
maravilhoso e imprescindível se aventurar a cada dia em algo novo. Em um dado
momento, o Thio perguntou:
- Pelo que
vejo, você gosta muito do que faz...
- Adoro, não
trocaria essa vida por nada.
- Sente-se
confortável, nela, não é?
- Sim,
poderia dizer que sim.
- Ótimo.
Então, seguindo o seu conselho, você deveria sair dessa zona de conforto.
Deveria ir para a casa e nunca mais se aventurar em nada, já que aventuras são
a sua zona de conforto.
- Ãh?
- E outra coisa. Parem de me encher com esses conselhos estúpidos, tenho mais o que fazer da vida! – completou o Thio saindo da sala logo em seguida. Pelo que percebi, ele voltou à sua zona de conforto, adorável conforto que só quem não entende quer sair.
Próximo domingo, dia 6/12/2k20, haverá o lançamento virtual da coletânea "Pandemia de palavras" da qual participo com um texto. Estão todos convidados:
Por que a própria experiência de vida por vezes perde para o preconceito? Por que, por vezes, a voz do outro se sobrepõe à sua própria?
Lembro de uma conversa que repetidas vezes tive com uma tia
minha, já falecida infelizmente. Ela participava, via a igreja que frequentava e
de forma bastante atuante, do gerenciamento de uma creche voltada às mães trabalhadoras
de uma comunidade. Trabalho voluntário e gratuito a quem necessitava utilizar
tal serviço. Naturalmente, essa creche vivia sempre necessitada de auxílio externo,
principalmente financeiro.
- Sabe qual foi o prefeito que mais nos auxiliou? – ela me
perguntou várias vezes mas, sem esperar resposta, continuava – foi uma
prefeita, foi a Erundina.
Dito, ela contava detalhes, explicava que a ajuda era
financeira, mas não só, era de apoio logístico, de treinamento. E seus olhos
brilhavam de saudades de um tempo em que ela viveu e sentiu na pele um apoio institucional
que nem antes, nem depois, a creche teve.
Estas conversas, as tínhamos normalmente às vésperas de
eleições e eu então perguntava a ela se seu voto iria para a Erundina.
- Não, não, ela é de esquerda... é do PT...
Talvez, em algumas das vezes, tivéssemos tido essa conversa
depois da Erundina já ter saído do PT, não importa, importa é que o medo prevalecia,
o medo tão cuidadosamente cultivado na classe média contra a tal esquerda, o medo
que se sobrepõe a tudo, até mesmo ao reconhecimento à própria experiência
pessoal.
Nunca a ouvi fazer críticas à atuação da Erundina como
prefeita, quando falava eram só elogios. A crítica era que Erundina era de
esquerda, mas se tentássemos entender a profundidade disso, nada vinha.
Minha tia morreu muito antes do golpe de 2016, não passou
pela intensificação dos ataques à esquerda, na massificação das ideias torpes
que levaram 57 milhões a votarem a favor do ódio e contra a solidariedade. Ela
já morreu e eu nunca consegui convencê-la a confiar mais na sua própria experiência,
a ouvir mais a sua própria voz e menos o que diziam os editoriais do Estadão ou
a fala mansa e repetitiva, mas também hipócrita, dos apresentadores dos jornais
noturnos.
Pena.
Não deu tempo para eu convencê-la de que a esperança
Erundina merecia voltar. E voltou, sim. Agora com Boulos.
meus
escritos
baseados
em
fatos
ficcionais
************************************
hora
da
morte,
um
curta
metragem
************************************
apps
também
terão
seus
quinze
minutos
************************************
sessenta
se
tenta
se
senta
setenta
seguro
será
************************************
sorria,
seu
perfil
está
em
construção
Na vizinha República de Hygina haverá eleições no próximo final de semana. Tal e qual aqui, eles adoram nos copiar. Copiam no confuso (para não dizer outra coisa) ordenamento jurídico, copiam nas mazelas eleitorais, copiam até nas urnas eletrônicas.
Sim, há tempos eles também se utilizam das tais invioláveis
urnas eletrônicas e se vangloriam que, com elas, não há fraudes. Aliás, como se
verificar se há algo errado se não é possível se recontar os votos caso isso fosse
necessário? E nunca é, e não se fala mais nisso.
Mas, esse ano, o Maioral Tribunal Eleitoral (MTE) da República
de Hygina irá testar, em algumas poucas e bem escolhidas seções, um sistema de
votação via celular. Modernidade é tudo, mano, deslumbramento também. Claro
que, como nada valerá de fato, o teste será extremamente bem sucedido e todos
os maiorais irão se vangloriar disso.
Mas o verdadeiro
pulo do gato do MTE está reservado para as próximas eleições. Se eliminando as
urnas eletrônicas e fazendo com que as pessoas votem a partir do próprio
celular o custo se reduz bastante, imagina esse próximo passo que não dependerá
de centenas de milhares de equipamentos ou de algum sofisticado sistema de segurança.
Muito menos, o melhor para eles é isso, dependerá da participação direta dos
eleitores, grande sonho de consumo dos hygienistas da República de Hygina. Nada
de abraços no povo, ou de pasteis de feira ou cafés requentados (imagina então
buchada de bode para o candidato que diz ter um pezinho na cozinha, puro sofrimento...)
Assim
funcionará. Algoritmos, a partir das informações coletadas diretamente em redes
sociais ao longo de meses, irão traçar os perfis dos eleitores e, com isso bem
estabelecido, escolherão, em seus nomes, os candidatos mais apropriados a cada
um. Um veloz computador poderá resolver esse problema em poucos minutos poupando
a todos, eleitores e eleitos, o imenso trabalho que as eleições atuais embutem.
Nada de propaganda televisiva, de impressos, de marqueteiros, de grupos de trabalho
para a eterna repetição de propostas, de tentativas de convencimento. Pouparão,
também, os olhares de besta de candidatos que, frente à televisão, já se sentiam
eleitos mas perceberam que o resultado fora outro. Como efeito colateral, pode-se
até dizer que somos a maior democracia do mundo e onde a abstenção na votação é
nula.
Há
detalhes, claro, a serem acertados, um deles sendo que Inteligências Artificiais
não conseguem perceber ironias, o que pode distorcer um pouco a construção dos
perfis. Mas nada que (mais) uma reforma na legislação não resolva. Uma PEC, por
exemplo, proibindo as ironias nas redes sociais. Teria o irrestrito apoio do
Zuck.
Que
venha o futuro! Mas que venha gentil com os não deslumbrados...
PS - Seria engraçado, trágico
não fosse. Dois anos atrás, um grande jornal de São Paulo fez algo do tipo. A
partir das respostas a um questionário online, o jornal traçava o perfil do
eleitor e indicava em qual candidato ele deveria votar para deputado. Qual tenha
sido o resultado, o fato é que não repetiram a experiência dessa vez. Talvez
estejam aperfeiçoando as perguntas...
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Em
1988, eu estava na Inglaterra fazendo o meu doutorado e calhou de estar em
Londres nos dias seguintes à eleição municipal de 15 de novembro. Lembro bem de
ver em um jornal inglês a notícia da eleição da Erundina para prefeita de São
Paulo. Naqueles tempos, notícias sobre o Brasil demoravam a chegar até nós, sem
a agilidade de hoje (atenção, garotada, o mundo já existiu sem internet). Era o início dos e-mails (não aqui, mas lá),
ainda restritos ao meio acadêmico mas já tínhamos, os brasileiros vinculados às
universidades inglesas, um grupo para troca de notícias. Mesmo assim, era tudo
muito lento, a carta ainda era o grande meio de troca de informações. Só para
se ter uma ideia, no ano seguinte, eu veria o famoso debate entre Lula e Collor
em uma sala na Universidade de Londres só depois da eleição propriamente dita e
já sabendo do péssimo resultado. Alguém havia conseguido trazer, de avião, uma
fita cassete com a gravação desse debate, para nosso delírio, que fingíamos não
saber o resultado só para manter ainda uma esperança. Se me lembro bem, nenhum
apoiador do caçador de marajás esteve presente naquela sala, tempos bons
aqueles.
Pois bem, voltemos um ano e lá estava eu lendo a matéria sobre a eleição da Erundina, a notícia que nos pegou de surpresa, pois apesar de tentar acompanhar as eleições à distância, não achávamos que ela teria chances de ganhar. Ela ganhou e eu, ganhei o dia! Ou vários dias, semanas, meses, anos, por assim dizer. Havia, mesmo no texto do jornal inglês, um clima de empolgação com as mudanças que viriam com ela, parecia até que aqueles tempos de traição e acordões estavam sendo deixados para trás. Telma e Luiza, quem viveu esses tempos, sabe do que falo. E que luxo ter um Paulo Freire como Secretário da Educação! Uma Marilena Chauí, um Paul Singer! Ao voltar para casa (inglesa na época) naqueles dias pós eleição eu escrevi um texto chamado “Esperança Erundina”, só por escrever, só para extravasar minha alegria e esperança.
Muita
coisa mudou desde então, mudei de casa algumas vezes, viajei, perdi escritos
pelo caminho. Mas algo não mudou, meu voto, sempre que pude votar, foi para a
Erundina. Recentemente, fui atrás desse texto escrito naquele longínquo 1988,
mas não o encontrei. Lembro que tinha uma versão digital em um daqueles meus computadores
primitivos e gravada em um disquete cinco polegadas, apesar do original ter
sido escrito à mão. Mas nem uma nem outra encontrei. Lembro-me de trechos desse
texto, algo ainda não foi totalmente consumido pelo tempo em minha memória, mas
preferi não tentar reconstruí-lo, trinta e dois anos fazem a diferença na vida
e na escrita de todos. Preferi, sim, lembrar que houve um tempo muito bom que
chamei para mim mesmo de Esperança Erundina e, que coisa, voltou de repente
em minha mente, apesar de tudo que temos vivenciado.
Renovou-se,
por assim dizer, no meio dessa tragédia que nos abate dia a dia.
Esperança Erundina, agora com Boulos.
Três. Por
conta da pandemia, acabei concentrando algumas compras em um dado supermercado
que tinha um programa de fidelidade. E, por conta desse programa, ganhei
algumas estrelinhas que geravam descontos nas compras seguintes. Não, não
estamos falando de milhões, falamos de descontos muito esporádicos de vinte
reais. Usava-os e sonhava em voltar aos meus velhos hábitos algum dia, ainda
mais que o tal supermercado aumentou todos os produtos (é do sistema levar
vantagem em tudo, ainda mais vantagem em cima das desgraças que afligem a
sociedade). Mês passado, ufa, ganhei duas estrelinhas para usar no mês
seguinte. Mas, quando fui utilizá-los, o supermercado anunciou uma mudança no
programa de fidelidade. Rojões para todos os lados, auto elogios insanos como
sempre acontece nesses casos, eu fui apresentado a esse moderníssimo programa.
Mas, e as porras das estrelinhas que já tinha ganho? Desapareceram...
sumiram... assim como a cara de pau dos tais “empresários doadores em tempos de
pandemia”, tão bondosos eles são. Escrevi ao supermercado perguntando se eles
iriam honrar os prêmios que supostamente ganharei nesse novo programa do mesmo
jeito que honraram as... as... estrelinhas que sumiram. Ainda espero resposta
e, creio, muito esperarei.
É, não há como...
Quatro. Acabo
de ler num jornal de São Paulo que mais um indicado a um cargo nesse governo
(ainda precisa ser sabatinado no Senado) mentiu sobre o seu currículo: ele
dizia que “defendeu um pós-doutorado antes de ter o título de doutor” pois “na
Europa é assim...”. Como tem sido já um hábito, a própria universidade indicada
por ele desmente o tal estágio de pós-doutorado (além do fato de que não há
“defesa” em pós-doutorado, que isso não é título). Mas quem se importa? O gado
simplesmente aplaude!. Como temos vivenciado nesses tempos sombrios, isso não é
nada de muito anormal por aqui, mas a palavra “mentira” ou variações não
apareceram, de fato, no texto jornalístico. Dizia apenas que o tal candidato
tinha “exagerado” em seu currículo. Sem comentários. Aliás, um só: isso tinha
sido só o começo da tragédia.
Definitivamente, não há como...
Cinco. E por
falar nisso (esse texto não acaba...), há uma escola estadual na Rua João
Moura, em Pinheiros, São Paulo. Quem passar pelas redondezas logo perceberá que
é uma região que está bombando com inúmeros empreendimentos imobiliários. Pois
bem, o Ministério Público protocolou uma ação contra essa escola (pública, do
próprio estado), ameaçando interditá-la por conta do barulho que os seus alunos
fazem. Deixando de lado o fato de que isso ocorre no meio de uma pandemia em
que as escolas estão fechadas (deve ser o barulho das aulas online, só pode ser...),
podemos concluir, por exemplo, que a elite local paulistana se incomoda com o
barulho que as escolas públicas fazem, e entendam isso do jeito que quiser,
literal ou figurativamente. Longe de mim inferir que o terreno da tal escola é
valioso demais, para a elite, para comportar uma mera escola pública. Aliás,
lembro de um colunista da Folha (não direi o nome) que uma vez defendeu que o
campus da USP era valioso demais para abrigar uma universidade e propunha
vendê-lo para a iniciativa privada que faria um melhor uso dele com shoppings e
escritórios.
Preciso repetir?
Seis. E aí,
um supremo do judiciário manda soltar um supremo do PCC...
Como
diria o Thio Therezo, não há como o Brasil dar certo. Não há...
Um. No
meio da pandemia, a minha carteira de motorista venceu. Acontece, mas o que fazer?
A sorte foi que ela venceu quando o Detran já tinha esquematizado todo um
sistema de renovação via online. Fui lá, entrei na página, cadastro daqui,
cadastro dali, senha acolá, leitura interminável de instruções desconectadas,
mas finalmente consegui entrar com um pedido de renovação, aproveitaram minha
foto e a biometria. Marcaram uma data para o exame oftalmológico (única coisa
presencial). Lá vou eu, ficha daqui, ficha dali, exame, dificuldades, como
sempre, na leitura biométrica, uma boa conversa com o médico que me atendeu e
pronto, renovada estava.
Mas o Detran avisava que não iria imprimir ainda a carteira
de motorista, só depois que a pandemia permitisse. Entendo perfeitamente, até
razoável. Qual a solução? Eles mesmos indicavam: baixar a carteira digital por
meio de um aplicativo. Lá vou eu, baixo um, cadastro daqui, senha ali, não
serve, a senha precisa ter tal e tal característica, acerto finalmente uma
senha aceitável em uma terceira tentativa até descobrir que o app que tinha
baixado não era o que precisava, ele me dava todas as informações sobre minha
vida de motorista mas, para baixar a carteira, precisava de um outro app mais
específico. Lá vou eu de novo, cadastro daqui, senha dali, não, essa senha não
serve, imbecil (e o palhaço com um caderninho do lado para anotar todas essas
senhas, cada uma com uma característica, não dá mais para usar a mesma para
todos os lugares).
Pronto. App baixado e funcional. Vou tentar baixar minha
carteira (que já tinha sido renovada, conforme o primeiro site me atestava) e,
surpresa, preciso de um par de números para confirmar a existência da carteira.
Um é o Renavam, que, acredito, é o mesmo da antiga carteira, e o outro, como
assim?, é um número que aparece na carteira impressa e depende do documento. Ãh?
Para ter a carteira digital, preciso da carteira impressa, mas não tenho a
carteira impressa por conta da pandemia. E a solução proposta do Detran para a
ausência da carteira impressa é usar a digital... Escrevi pedindo instruções e,
receio, irei esperar até a próxima pandemia por uma resposta.
Não, não há como dar certo...
Dois. Fui ao
banco retirar um dinheirinho. Fazia tempo que não ia fisicamente à minha agência
por conta da pandemia. Chego lá e tem uma folha A4 dizendo que a minha agência
tinha sido incorporada a outra agência distante, talvez, uns dez quilómetros,
aliás muito inconveniente para mim (a que tinha escolhido anos atrás ficava a
dez minutos a pé de meu trabalho e essa nova, sei lá onde...). Nenhum aviso prévio
ao palhaço do cliente sobre essa mudança, nenhuma opção de escolha ao palhaço
do cliente, nada, nada, surpresa total! Sabemos todos que, para manter seus lucros
abusivos, os bancos optaram por fechar agências e despedir pessoas (além de
contratar uma equipe de marketing para dizer o quão bonzinhos e caridosos eles
têm sido na pandemia) e, além disso, tratam os clientes como palhaços. O pior é
que escrevi à minha gerente e, pareceu-me, ela não entendeu minha indignação
com o fato de ser tratado de forma desrespeitosa e não profissional nesse caso,
ela simplesmente não percebeu nada, acho até que achava sinceramente que o
banco tinha agido de forma correta. Nem um pedido de desculpa por ter falhado
em, ao menos isso, me avisar, apenas uma ameaça velada que, se eu tentasse
mudar de agência, teria problemas decorrentes da mudança de cartões e outras
coisitas. A anestesia social está a tal ponto que não se percebe mais a falta
de cidadania no tratamento com as pessoas.
Não, não há como...