Prescrito...
quinta-feira, 31 de dezembro de 2015
quinta-feira, 24 de dezembro de 2015
quinta-feira, 17 de dezembro de 2015
O melhor sorvete de chocolate branco com cereja do mundo!
Por um
bom tempo, ainda sentiria na boca o gosto daquele sorvete de chocolate branco
com cereja que tomei em Bahia Blanca no longínquo verão de 1979. De certa
forma, ele sinalizou um momento especial da louca viagem que fiz com dois
outros colegas em janeiro daquele ano. Antes de desfrutar o sorvete, toda uma
viagem para entrar, via Paraguai, no norte da Argentina e um longo caminho até
chegar a Bahia Blanca.
Sempre por via terrestre, os
três mochileiros já estávamos cansados de dormir em trens, não raramente de
carga, em vagões semivazios, sob pedras uma noite, tentar pregar os olhos em
ônibus barulhentos e sem amortecedores, ou buscar um descanso que fosse em
estações de cidades pequenas do interior do país vizinho, bancos
desconfortáveis em corredores ruidosos e friorentos...
Atravessamos
todo o norte da Argentina assim. Resistência, Tucumán, Jujuy, Salta...
Por
vezes, eu me pergunto se ainda seria possível se fazer uma viagem como aquela
em um mundo tão mais complicado e violento como o de hoje. Como ser acordado
por um guarda de estação dentro de um vagão de trem de carga e, no máximo e sob
sorrisos divertidos, ele só pedir para você sair? Como ser abordado, em uma das
cidades fronteiriças com o Chile por soldados do exército à paisana
(inconfundíveis pelo corte de cabelo) e, após checarem os documentos, ser
liberado com um sorriso e um desejo de boa viagem após se certificarem, pelos
passaportes, de que não éramos os inimigos do momento?
Era a
época da quase-guerra entre a Argentina e o Chile pelo canal de Beagle, tempos
nervosos ao longo da extensa fronteira entre os dois países. Imagina que
estávamos, Brasil, Argentina e Chile, em plenas ditaduras militares. Se
fôssemos sensatos, mas não éramos, éramos jovens, mas se fôssemos, não éramos,
isso é claro, mas se fôssemos não nos arriscaríamos tanto, tempos difíceis e
cruéis. E como tudo deu certo ao final, apesar de tudo? Mistério que até hoje
me pergunto como aconteceu.
Mas
sobrevivemos, aos trens de cargas e aos milicos da fronteira e, com sequelas é
claro, às ditaduras. Sobrevivemos aos sonhos inquietos, às inseguranças da
idade e, principalmente, às noites mal dormidas.
Mais de
trens do que de ônibus, mas também de ônibus e poucas vezes de caronas,
viajávamos de noite para economizar hotel, só um dos quinze dias dessa viagem
maluca dormimos em um hotel, o que ainda não tinha acontecido quando saboreei o
melhor sorvete de chocolate branco com cereja do mundo! Bom, provavelmente o
era...
Depois de vencermos o norte
da Argentina, nós a cruzamos diagonalmente na direção de Bahia Blanca. O
objetivo? Ir para a Patagônia e Bahia Blanca é a chamada porta de entrada da
região. Um passeio pela cidade sem grandes atrativos, o tempo quente do verão,
a sorveteria...
Talvez
tenham sido os efeitos do sorvete, tão bom que estava, mas acontece que em um
dado momento, o da quinta cereja, talvez?, o cansaço desabou impiedosamente sobre
mim, trazendo junto o esgotamento mental daquela minha primeira viagem
internacional. Para ao menos dois terços de nosso grupo de três, o sorvete
significava o momento do começo do retorno, a suspensão momentânea dos sonhos.
E, ao
menos para um terço do grupo, a mim ao menos, a viagem já tinha trazido a
experiência buscada e já se estabelecera a vontade da volta, o tempo de
retornar para casa, para o descanso e cultivo da memória da viagem e, é claro,
o lento e inevitável planejamento da próxima. Há momento para cada coisa e
aquele era o da volta.
A
Patagônia ficaria para um outro momento, ao menos para mim, e voltamos, dois
terços do grupo de três, para Buenos Aires. Lá, a única noite em um hotel. No
caminho, o companheiro mochileiro adoeceu e acabou voltando a São Paulo de
avião. De minha parte, ainda teria que resistir a 48 horas de ônibus, e todo um
caminho de ônibus de Buenos Aires a São Paulo via Porto Alegre e que, sei lá
por que, evitou cortar caminho pelo Uruguai. Pouco dinheiro, já nem dava para
parar em algum lugar mais.
O
interessante é que, uns treze anos depois, por motivos profissionais, foi bem a
Bahia Blanca que retornaria em minha segunda viagem à Argentina, e ainda
retornaria por ao menos uma meia dúzia de vezes mais. Trabalhar com colegas da
universidade, ministrar minicursos, participar de congressos e quetais.
Se eu
fui atrás do sorvete de chocolate branco com cereja? Não, não fui e confesso
que até pensei em ir, mas não. Preferi, ao final, manter a lembrança do momento
maravilhoso vivido aos 18 anos e evitar a segura e decepcionante experiência de
encontrar um ordinário sorvete de chocolate branco com cereja, como bem pode
ser o caso.
Há
momentos para tudo e para cada coisa, que o sorvete permaneça na memória a que
pertence...
quinta-feira, 10 de dezembro de 2015
Exageros à parte
E há de haver aqueles que hão de dizer que há de haver
exageros nas estórias aqui relatadas envolvendo o Thio Therezo. E já houve até
quem tivesse sugerido, com aquela ironia típica dos invejosos, que foi o Thio
Therezo que ensinou o Pelé a cabecear...
Exagero,
pura maldade, inveja...
Ou
quase, pois, na realidade, já que tocaram no assunto...
quinta-feira, 3 de dezembro de 2015
Lenda Urbana
Das lendas urbanas, há uma que o Thio
Therezo acha das mais ridículas, a que insiste que ninguém, a menos de uns
poucos eleitos dos deuses, conhece a fórmula exata da Coca-Cola. Muitos já
devem ter escutado que existe apenas um papelzinho do começo do século passado
guardado em um cofre de segurança máxima em Atlanta com a receita exata. Ou
algo do tipo, em uma aproximação grosseira de uma possível realidade.
Acontece
que Thio Therezo, um dia, resolveu repetir a fórmula da bebida em nossa
cozinha, nos intervalos em que mamãe fazia os deliciosos pastéis de carne (que
a gente, em uma atitude puramente anarquista, fazia virar pastéis de
arroz-feijão-carne) e os saborosos nhoques... mas cá estou eu me perdendo em
reminiscências...
Voltando,
o Thio aproveitou um intervalo de descanso da mamãe, sua irmã predileta, e
conseguiu, em nossa mal equipada cozinha, repetir a famosa fórmula de
fabricação da Coca-Cola. Arranjou umas garrafas de vidro e as preencheu para
servir em nosso almoço dominical.
Nem
mesmo papai, tão crítico com o Thio quanto era possível, percebeu qualquer
diferença entre a bebida produzida localmente e a bebida comprada no
supermercado.
Acontece
que vazou, a notícia de que o Thio tinha conseguido repetir artesanalmente a
fórmula da Coca-Cola em uma cozinha comum de bairro logo tomou de assalto todos
os principais jornais do mundo, para desespero dos donos da companhia
fabricante de tal bebida. Como vazou, ninguém nunca soube direito, há quem
afirme que o Thio se vangloriou do fato em algum bar de esquina, o que todos
que o conhecemos duvidam imperiosamente, ele
seria incapaz disso.
Há quem
afirme que havia uma escuta ilegal na cozinha de mamãe e que tudo foi
gravado/filmado. Mas ora! quem poderia sequer imaginar tal absurdo! O único
segredo industrial que posso imaginar naquele ambiente é o da rapadurinha de
amendoim que mamãe fazia e ninguém conseguia reproduzir...
O
fato foi que vazou, e percebemos isso quando a própria Coca-Cola foi a público,
em um anúncio que poucos entenderam realmente mas que ao Thio Therezo ele estava
claro demais, em um anúncio de página inteira de jornal negando qualquer
vazamento da fórmula e dizendo ser absurda a versão, não confirmada ao ver
deles, de que seria possível se repetir a fabricação da famosa bebida nas
condições em que o boato insistia ter sido feita. Era, todos deveriam saber, o
mais guardado segredo industrial da história da humanidade!!!! Nada disso,
porém, impediu que toda a diretoria da Coca-Cola mundial coletivamente
renunciasse dias após esse frustrado anúncio.
Por
dias, um carro estranho com vidros escuros ficou parado na esquina de casa e
sentíamos que estávamos sendo vigiados. Até que um telefonema misterioso chamou
o Thio para uma conversa. Ele, fã de filmes de espionagem, exigiu que essa
reunião se desse em um lugar público e lá se foi o Thio para o McDonald´s da
JK.
Esperamos
todos bastante apreensivos pela volta do Thio Therezo.
Ele
chegou rindo e, brindando com uma Pepsi-Cola, resumiu a todos nós a hilária conversa
com os advogados da companhia em alguns pontos: que a Coca-Cola nada iria fazer
a respeito pois de fato nada ocorrera e quem dissesse o contrário iria ser
processado por calúnia; que o Thio Therezo ficasse tranquilo pois se algo
acontecesse a ele, qualquer suspeita poderia recair sobre a companhia e isso
eles não queriam (reconheceram, sem reconhecer, que o carro de vidro escuro
parado na esquina de nossa casa no Itaim, era, na realidade, para a proteção da
integridade do Thio); que todos esquecêssemos o ridículo caso, caso aliás que,
para todos os efeitos práticos, não ocorrera. E só pediam em troca algo: que o
Thio nunca tentasse fabricar a Coca-Cola, mesmo caseiramente, que isso era sabidamente
impossível e que a única preocupação da companhia era apenas evitar que o Thio
se desmoralizasse publicamente caso tentasse fazer algo impossível de ser feito.
Pedir, foi modo de dizer, insinuaram apenas...
O
Thio ria dessa situação toda, ria e brindava... com uma Pepsi...
Com
o passar dos dias, o carro desapareceu, foi só o tempo suficiente de a mídia
esquecer do que a companhia chamou de ignóbil
boato totalmente desprovido de qualquer chance de se realizar. Mas,
queiramos ou não, toda semana, um caminhão da Coca-Cola nos entrega algumas
caixas da bebida, muito mais do que podemos sequer imaginar em beber. Isso, só
para garantir que o Thio não tenha vontade da bebida e se meta a fabricá-la na
cozinha...
E
o Thio, até hoje, ri da situação!
quinta-feira, 26 de novembro de 2015
Vinténs - II
Algum dia...
Ao que, ela finalmente disse:
“por ora, ainda
quero investir em ser feliz...”
E ele retrucou:
“ainda bem que é só
por ora... terei alguma chance mais tarde, não?”
Ambos riram e, pelo resto daquele primeiro jantar juntos,
o silêncio perdurou, cada um deles pensando no exato sentido da frase que o
outro dissera.
Clichês
Ele veio com a cantada padrão clichê para cima dela.
Cantada ridícula, hilária, absurda. Antes de reagir como reagiria normalmente,
ela se dispôs a olhar a ele de cima para baixo (talvez a justa encarada antes
de iniciar o ritual do esculacho que ele mereceria...). Mas, a olhada mudou
tudo... e, ao final, sorriu. Ela, pois ele já sorria há tempos
Ele podia. E ela queria...
Antes que ele abrisse de novo a boca, ela o levou para o
seu apartamento e, lá, os clichês não entraram.
Lambança
Lembra-se de todas aquelas lembranças? De nossos momentos
todos, de nossas viagens, daqueles jantares maravilhosos? Lembra-se deles? Da
música que compusemos juntos, das estrelas que não cansamos de contar, das mãos
dadas, dos dedos entrelaçados? Do amor na areia úmida? Lembra-se deles? Dos
planos? e que planos arrojados, né? E dos planos cotidianos? e dos
tresloucados..., lembra? Lembra-se das risadas todas no final da madrugada
regada a Tannat e Gruyère?
Lembra-se?
Pois é, esqueci-me de tudo! E foi de propósito!
pRima
“Mexe nessa rima
que ficará rica...” disse o poeta rico ao aprendiz.
Ele mexeu, mas não ficou rico.
Ao que o poeta retrucou: “dinheiro não é tudo, rapaz, case com sua prima que será feliz...”
E, desta vez, acertou!
quinta-feira, 19 de novembro de 2015
O próximo trem.
Cena 1. Final da década de 70, três mochileiros em uma estação de trem perdida no interior do norte da Argentina. Um longo caminho percorremos até lá e outro tanto ainda por vir, nem desconfiávamos naquele momento. A correria (im)prevista até a Patagônia, nosso objetivo, mas, se assim o era, porque não fomos direto ao sul e percorremos tanta terra na direção oposta? até hoje me pergunto isso. A longa volta atribulada e tudo o mais, seguir, seguir em frente sem muito pensar, assim íamos naqueles dias, essa era a nossa direção. Mas, naquele exato momento, olhávamos desesperançados o movimento de vai e vem dos trens de carga à nossa frente, que de passageiros já não os havia mais. Os três mochileiros, já cansados e famintos... um deles ao menos. Eu.
Cena
2. Alguns
anos se passaram, tanta coisa no meio, e um dos mochileiros está estudando na
Inglaterra, Liverpool. Liverpool, nunca contei? Um professor, cuja esposa
falava um pouco de português e queria treinar com um nativo, me convida para
jantar e lá se vai o mochileiro, trem para o subúrbio, ele e o professor. O
professor saca um livro para ler na curta viagem de meia hora até a sua casa,
era o que fazia todos os dias, por que não fazer isso também hoje, mesmo
acompanhado do aluno recém chegado? E o desprevenido ex-mochileiro, sem livro à
mão, apenas olha pela janela os subúrbios, melhor assim, pensei em voz baixa.
Os dois parecem cansados depois de um longo dia. E, um ao menos, também
faminto...
Cena
1.
Um dos mochileiros, outro, conversa com os guardas da estação, os trens de
carga ainda para lá e para cá, para cá e para acolá... Tudo parece tranquilo,
fora isso. Tínhamos chegado à estação sem planejamento algum e na expectativa
de se conseguir um trem, a forma barata de viajar por aqui. Mas nada de trem de
passageiros àquela hora para onde queríamos ir, na direção do Chile, pelo norte
da Argentina. Mas, se íamos para a Patagônia, por que esse caminho? Tanto tempo
e ainda estou confuso...
Cena
2. Um
passeio na praia antes de tudo, antes do jantar na casa do professor, um
passeio de casaco e sapato, de que outra maneira se vai à praia em Liverpool?
As centenas de árvores inclinadas pelo vento constante chamam a atenção do
ex-mochileiro. O jantar, lembro-me de um
fora que dei, não o assunto pois isso desapareceu da memória, lembro apenas que
o ex-mochileiro falou demais, em um inglês quebrado, confuso, medíocre, um fora
ou um mal entendido? um fora, sim, sem dúvida alguma. A janta, os queijos
depois dela (se os franceses comem o queijo depois do doce, os ingleses comem o
queijo antes, ou seria ao contrário? Não importa...). O café na sala, só o
professor e eu, já não veria mais hoje nem a esposa, nem os filhos, que tinham
desaparecido depois do queijo ou da sobremesa. Eu já tinha jantado outras vezes
na casa do meu orientador, sabia o ritual inglês, mas não todo, muito a
aprender ainda. Um xerez após o café, um café antes do xerez.
Cena
1. Logo
o mochileiro, o outro, volta esbaforido e nos comunica, aos dois mochileiros largados
em suas preguiças, que o trem, esse daí de frente, esse de carga? sim, ele
mesmo, o de carga e que lentamente começa a se mover, que ele vai na direção
que queremos. Para onde é que é mesmo? Ora, para onde o nariz aponta... De
longe, o guarda nos observa pronto a negar para quem perguntar que fora ele que
nos dera a dica sobre o trem que partia. Mas não precisará dizer, não precisará
negar, a estação está vazia a não ser por ele, a não ser pelos trens lentamente
se movendo por lá, e que parecem se mover sem ninguém no comando. E a não ser,
é claro, pelos mochileiros que agora saímos em desabalada correria em direção
ao trem, parece até pastelão, ver o gordinho aqui correndo atrás de um trem de
carga, carregando a pesada mochila redonda, quase que caíram todos ao chão,
esburacado e pedregoso. Mas pegamos o trem, subimos nele quando ele já estava
por demais acelerado, o meu coração também, o trem que nos levará para a
direção que queremos. Ainda dormiríamos nele, ainda quase seríamos descobertos
em uma estação futura, ainda muita coisa, ainda...
Cena
2. Café,
xerez, pouca conversa, e o professor repentinamente se levanta, olha o seu
relógio e avisa:
-... o
próximo trem para a cidade sai em dez minutos...
Acabou o tempo da visita, sinal dado, sinal recebido.
Levanto-me como esperado, não se deve desprezar os rituais, o ex-mochileiro
agradece rapidamente, despedimo-nos o professor e eu, e os dez minutos são mais
do que suficientes para se chegar ao trem que passa a duas quadras dali. O
professor sabia disso, que daria tempo, ele próprio necessita só de exatos sete
minutos e vinte e três segundos. Mas, a mim, se pudesse, teria ido mais
lentamente até a estação, talvez pensando na vida, que livro não trouxe, talvez
me perguntando o que tanto tinha mudado desde o dia em que subi, na correria,
em um trem de carga em movimento. E teria perdido esse, tão distraído estaria,
o que importa? Mas não o perdi...
quinta-feira, 12 de novembro de 2015
Scorza, o invisível
Por
sediar um Centro de Estudos Latinos
Americanos, a Universidade de Liverpool possui uma excelente biblioteca
voltada à literatura de nosso continente, inclusive a brasileira (desse Centro,
participou um grande estudioso de Machado de Assis, John Gledson, mas isso é
outra estória...). Não por menos, eu a frequentei regularmente nos quatro anos
em que lá estudei. Foi lá que tive acesso a muitos clássicos da literatura
brasileira, e que não tinha ainda lido (duro confessar isso, sei...). Grandes Sertões Veredas foi um que li na
sala de meu pequeno apartamento na residência da universidade, enquanto
esperava, olhando pelas amplas janelas, o mundo se acalmar (coisa rara em
Liverpool).
Lá, também, eu tive a oportunidade
de conhecer o que se produziu em nossos países vizinhos, que a literatura
lationamericana, em especial a do realismo fantástico, ainda estava em alta (o Cem anos de solidão é de 1967...). E foi
lá que li pela primeira vez Scorza, o escritor peruano nascido em 1928 em Lima
e morto em Madrid em 1983, ele que hoje está meio que esquecido, infelizmente. Devorei
tudo o que a bilblioteca da universidade tinha dele, isto é, quase toda a sua
produção literária.
Sua obra mais impactante divide-se em cinco livros chamados por ele de “baladas”. Começa com Rodoble por Rancas em 1970, passa por História de Garabombo el invisible (1972), El Jinete Insomne (1977), Cantar
de Agapito Robles (1977) até o último, La
Tumba del Relámpago publicado em 1979. Escrito no melhor estilo do realismo
fantástico, há quem considere esses livros muito datados por centrar-se nas
lutas camponesas que tomaram conta do Perú nas décadas de 60.
Talvez por isso, e também por conta
da sombra e oposição do onipresente Vargas Llosa no Perú, a literatura de
Scorza foi perdendo espaço por lá, principalmente depois da guinada para a
direita imposta ao nosso continente. Por motivos que talvez não sejam afinal tão
estranhos, o seu sucesso literário se deu muito mais na Espanha que no
continente americano, e não só por conta dos sombrios anos que vivemos por
essas bandas. Sucesso e reconhecimento são coisas, por vezes, inexplicáveis,
assim como o são o insucesso e o esquecimento.
De minha parte, de tudo o que li em
espanhol naquela época de Inglaterra, as baladas de Scorza foram as que mais me
marcaram. Deixando de lado até a, talvez polêmica, temática, muito me
impressionou sua capacidade inventiva e o perfeito domínio técnico da narrativa
escrita. Impressionou-me, como leitor e naquele meu particular momento em que
buscava eu mesmo começar a escrever, muito mais que a escrita do agora Nobel
Vargas Llosa, mas é claro que paro por aqui essa comparação, que não tenho a
capacitação necessária para fazer uma isenta e acadêmica análise da produção
deles. Nessas horas, preservamos a primeira impressão, por vezes muito mais
interessante que a análise profunda posterior.
Tempos depois, procurei comprar
esses livros (no original, claro) e sempre tive dificuldades. Por isso,
aproveitando minha visita a Lima em dezembro de 2014, fui atrás deles. Não
tinha muito tempo disponível (pouco mais que uma tarde livre no congresso em
que estava) e, nesse parco tempo, conhecer a cidade toda. E, por falta de tempo
aqui também, deixo outras considerações de Lima para outro momento e foco em
minha busca do Scorza, o invisível.
Ao lado da praça central de Lima,
por uma rua à direita de quem olha o Palácio do Governo, chega-se à Casa de la Literatura Peruana. Foi,
inesperadamente, minha primeira parada nessa busca, que se mostrou ao final
infrutífera. Ao entrar na Casa (aliás, uma ex-estação ferroviária), vi que no
andar de baixo havia uma biblioteca e lá fui eu. Em meu portunhol corrente,
entabulei uma conversa com o bibliotecário que, ao perceber que meu interesse
era o Scorza (e não o Vargas Llosa, como deve ser a maior parte das vezes),
mostrou-se animado em me contar muitos detalhes sobre ele, e muito do que falou
ia de encontro ao que eu próprio achava, mas contou-me coisas que desconhecia
como, por exemplo, que Scorza virou um editor no final da vida publicando muita
coisa que hoje consideraríamos literatura independente. De sua militância como
artista, de seu empenho como difusor da literatura.
Perguntei-lhe sobre onde conseguir
os livros do Scorza e ele me indicou duas livrarias, as principais da cidade,
mas não foi muito otimista quanto a eu conseguir comprar. Disse-me que uma
universidade tinha republicado, tempos atrás, o Redoble por Rancas, que havia a intenção de publicar todas as
baladas, mas que achava que eles ainda não o haviam feito.
Apesar do pessimismo, fui sim às
duas livrarias que ele me indicou, e que nem eram muito longe de onde eu
estava. Em uma delas, fui enviado a uma terceira mais, mas nem é preciso dizer
(para quem prestou atenção ao título da crônica) que saí de mãos abanando delas
todas. Por vezes, parecia que falava de um nome que poucos reconheciam.
Apesar de meu pequeno tempo em Lima,
gostei muito do clima da cidade (não do trânsito...), mas sai decepcionado de
lá por conta de não ter conseguido comprar os livros que tanto queria na minha
biblioteca.
Um
par de meses atrás, consegui, importando da Espanha, um exemplar do Redoble, mas foi o único. Ficarei nas
saudades, por enquanto, do tempo de descanso de meus estudos matemáticos para
ler Scorza frente às amplas janelas de meu apartamento em Liverpool...
quinta-feira, 5 de novembro de 2015
Chuvas - II
[[Esse é mais um conto de meu primeiro livro, “Contos que conto”, que estou republicando aqui]].
Chuvas - Temporal
Ele olhava pela janela, copo no mão, tarde da noite;
pensando, olhava pela janela a forte chuva que caía. Gostava de ver a chuva a
cair e de ouvir o barulho que ela faz quando cai. Algo que o fazia lembrar de
sua infância. A chuva, o barulho da chuva, seu gosto, seu cheiro.
Pensava
e lembrava.
Da
varanda veio um barulho de passos. Como se alguém estivesse a correr da chuva,
a se esconder dela como se a chuva fosse algo que assustasse. Estava sozinho na
casa principal e pensou que pudesse ser o caseiro a vir avisar algo, a pedir
algo, a conversar.
Sem
receios, abriu a porta e viu em um canto da varanda uma garota, cabelo
escorrido de molhado, olhar assustado, com frio. Assustou-se.
Ficaram
um pouco a olhar um para o outro. Ele impressionado com o jeito gracioso dela e
ela assustada. De repente, notou que ainda trazia o copo à mão e percebeu que
poderia oferecer-lhe um trago que fosse, uma bebida que fosse, que fosse ao
menos prá afugentar um pouco o frio e o susto. Convidou-a prá entrar e tomar
algo. Ela aceitou sem dizer palavra. Na realidade, ele não ouviria nunca dela
uma palavra sequer.
Quando
ela passou por ele, temerosa e toda encolhida, toda molhada e tímida, ele teve
pena. Foi à cozinha buscar um copo, encheu-o de uísque e deu a ela, que
timidamente tomou-o da mão dele e tomou dois longos goles.
Agora
ele está a olhar para ela sem saber ao certo o que fazer. Seu vestido a pingar
no carpete, toda encolhida e sem dizer nada, a segurar o copo com as duas mãos
de tal jeito que faz supor que é de lá que ela quer tirar todo o calor que
necessita para se aquecer. Um olhar sem olhar nada, um jeito gracioso de menina
calada, calada. Perguntou-lhe coisas com o olhar, com gestos e até com a boca.
Perguntou-lhe coisas e só recebeu o silêncio como resposta.
Foi à
janela a fingir olhar a chuva e a pensar no que fazer. Talvez pudesse
oferecer-lhe um quarto por esta noite ou levá-la pra casa, se ao menos ela
dissesse uma palavra, um gesto, um algo compreensível.
Virou-se
e ela parecia dormir, toda encolhida no canto da sala, o cabelo escorrido a
cobrir sua face. Resolveu ajeitá-la no sofá. Quando chegou perto e quando
estendeu as mãos a buscá-la, a carrega-la para o sofá ela abriu os olhos, não
mais assustados, meigos olhos a olharem e ante o recuo dele procurou-o e
abraçou-o carinhosamente de tal jeito que parecia querer extrair todo o calor
dele para aquecer-se.
Levantou-a.
Ela encostou sua cabeça no ombro dele e ele sentiu seu rosto molhar-se com o
contato do cabelo dela, e ele sentiu o mesmo cheiro que a chuva tem quando está
a cair e ele sentiu o mesmo cheiro que o faz se lembrar da infância.
De volta
ao presente voltou a perguntar-lhe de onde é que ela vinha, se podia ajudar.
Ela continuou muda, abraçada a ele, a roubar-lhe o calor. Por um instante, ela
lembrou-lhe a filha e abraçou-a como se isto pudesse trazê-la de volta. Gastou
um momento pensando nisto.
Sentaram-se
os dois no sofá e por um tempo ficaram a se aquecer. Com a roupa um pouco
molhada ele é que precisava agora se aquecer; de repente ela se levantou o
olhou ao redor como se procurasse uma misteriosa porta. Avisou-lhe que o
banheiro ficava no andar de cima e ela se foi a sorrir, agradecendo.
Tomou um
golo de uísque, acabou-o, levantou-se, encheu o copo, voltou a sentar no sofá,
tomou um gole, acabou, levantou-se do sofá, foi encher o copo quando pensou que
algo de errado poderia ter acontecido. Demorava demais.
Subiu as
escadas com um pouco de medo, é certo. Olhou o banheiro e este estava vazio.
Quando passou pelo quarto viu que ela estava deitada lá, nua a se enroscar e se
aquecer em seus lençóis.
Sorriu
dela e de si mesmo.
Quando
ia saindo do quarto, deu uma última olhada e ela o olhava também, aquele olhara
que ele nunca iria esquecer, nem tentou é certo e aquele olhar lhe dizia mansa
e timidamente que a cama dava para dois, para dois se aquecerem e que por favor
não se vá que eu tenho muito frio e muito medo e que a chuva ainda está a cair,
ouça o barulho, sinta o cheiro e tudo aquilo que aquele olhar gracioso disse e
tudo aquilo que um olhar gracioso costuma dizer a boca resolve se calar.
Agora os
dois estão deitados nus a se aquecerem e a ouvirem o barulho que a chuva faz
quando cai no telhado e ele está a pensar que ficar abraçado a alguém em algum
canto quente é a melhor coisa a se fazer nestes dias de chuva forte. Lembranças
da infância, é certo. O barulho da chuva. A segurança de um abraço. O cheiro da
chuva. O consolo de um sorriso. Ele a pensar nisto tudo e a lembras, mas a ela,
o que é que ela pensava todo este tempo? pensou ele.
Seu
longo cabelo molhado já encharcara os travesseiros e ela agora se mexe e se
ajeita e ele sente sua mão a acaricia-lo, lentamente a agradá-lo a aquecê-lo e
ele agora já está a acaricia-la e a tocá-la e a aquecê-la e eles agora já estão
a se abraçarem e se beijarem timidamente e sua mão percorre todo o corpo dela e
o corpo dela se estremece todo e se arrepia e o dele também e os dois agora já
se procuram para se beijarem e fazerem aquilo que é a melhor coisa nestas
longas noites de chuva forte. Nestas escuras noites de chuva em que perdia o
sono. Lembranças;
O
barulho da chuva. O barulho que ela faz nesta noite de chuva penetrou em seus
ouvidos e o fez estremecer e o fez se sentir feliz a amá-la, a amar seus
gemidos ouvindo a chuva a cair, a amar seus olhos fechados e a se sentir feliz
a acariciá-la e a aquecê-la e agora também já se sente aquecido e acolhido e
feliz e ele se sente molhado, seu rosto a deslizar uma gota d’água, uma gota
d’água a deslizar lentamente por todo o seu rosto. A deslizar pelo seu rosto da
mesma maneira que os dedos dela o fizeram com a intenção de conhece-lo e
conheceu-o tocando e percorrendo lentamente o seu rosto que agora produz uma
outa gota e outra mais que finalmente cai no rosto dela que agora ri com aquele
sorriso que só se tem nestas horas e ele pensa que seus olhos hão de estar
sorrindo também por detrás das pálpebras fechadas a acompanhar o sorriso dos
lábios e geme e gemem enquanto se amam e sente a gota d’água no seu rosto a
escorrer por todo seu rosto e de repente os dois estão encharcado de suor, dele
e dela, encharcados da água da chuva que para todos os efeitos agora cai dentro
do quarto. A chuva a deslizar pelas paredes, a encharcar os lençóis, a empoçar
no chão, a chover e a molhar todo o corpo, os corpos unidos a gozarem e a pensarem, ao menos ele,
que esta é a melhor maneira de se passar uma noite como esta, ouvindo o barulho
da chuva junto ao cheiro dela. O medo, o cheiro, o barulho, as lembranças da
infância.
Amanheceu
e ele não a encontrou mais lá. Nunca mais, por um instante que fosse, ele iria
tocá-la, revê-la que fosse. Dela só sobrou o cheiro, este cheiro que sempre
sentia nas fortes noites de chuva. Ainda chovia forte.
quinta-feira, 29 de outubro de 2015
Nobel por um dia...
Foi um verdadeiro lio quando o Thio Therezo foi indicado para o Nobel da Paz por “contribuir de forma inequívoca à fraternidade entre os povos” como constaria em um comunicado oficial da Fundação Nobel. Eles, que normalmente se recusam a comentar sobre candidaturas que não foram premiadas, tiveram que abrir, naquele específico ano, uma estrondosa exceção frente às especulações que geraram o vazamento da concessão do prêmio ao Thio.
Foi assim.
Um emissário da Fundação ligou ao Thio Therezo às cinco horas da manhã para dizer-lhe que tinha sido agraciado com tal prestigioso prêmio e etc. e tal. E solicitava que o Thio guardasse segredo, pois o nome do premiado só seria divulgado mais tarde.
O telefonema acordou-nos a todos em casa, e fomos, um a um, encontrar o Thio pendurado ao telefone falando em um perfeito e educado norueguês (ao menos, pareceu-nos perfeito; tá certo que essa é sempre a impressão que se tem quando não se fala uma língua, mas...). Após essa conversa, Thio Therezo comunicou-nos sobre o prêmio e, bocejando, completou.
“Que mania esses europeus têm de ligarem sem se importarem com o fuso... podiam ter esperado eu acordar, ora bolas! Vou continuar meu sono...” e seguiu para o seu quarto. Ainda sob o impacto da notícia, nem conseguimos articular resposta que fosse.
O segundo telefonema foi dado um par de horas depois quando Thio Therezo ainda fazia suas abluções matinais (o Thio ainda é a única pessoa que eu conheço que faz abluções matinais). Dessa vez, um alto comissário da Fundação Nobel ligava para relatar-lhe possíveis resistências, internas e externas, a essa concessão. No primeiro momento, ninguém conseguia entender as razões para tal, ainda mais a família, tão orgulhosa era dos feitos e achados do Thio em todas as áreas do conhecimento humano e também por sua luta em prol de uma sociedade mais justa.
Só mais tarde é que um outro telefonema veio a esclarecer que nada havia de pessoal contra o Thio, apenas que havia um grande lobby para que um famoso general ficasse com o prêmio. Esse, assim como o Coronel Buendía, tinha iniciado 17 guerras e agora, no estertor de sua vida e se vendo devorado por um agressivo câncer, lançara uma autobiografia em que se arrependia de seus pecados e se postava como o grande defensor da paz mundial.
O comissário argumentava que muitos achavam que o Prêmio Nobel estaria melhor nas mãos do general (não vou nomeá-lo, nem insistam) em vista do possível marketing que isso poderia trazer à causa. Thio Therezo, sereno demais dado que via seu prêmio sair voando pela janela, ainda perguntou sinceramente a qual causa o comissário se referia, mas a ligação caiu em seguida, deixando a todos nós sem uma resposta.
Os telefonemas internacionais seguiam ao longo do dia e, apesar de ninguém confirmar, era visível a tendência de retirar o prêmio do Thio e entregá-lo ao general que lutava ferozmente com todas suas forças e meios pela causa da paz...
Thio Therezo, a parte dos telefonemas, não mudou sua rotina naquele dia. Nós é que, desde a primeira ligação dos noruegueses, não conseguíamos mais nos acalmar. Thio Therezo, coerente com o seu jeito, não fez uma ligação que fosse, não fez um contato sequer.
Ao final do dia, já eram umas nove horas da noite (o Thio Therezo ainda comentou, ao ouvir o telefone tocar, “mas esse pessoal não dorme?”), uma última ligação, agora do Presidente da Fundação que, todo constrangido, pedia desculpas pelo ocorrido e por ter sido obrigado a mudar a premiação, que seria dado ao general.
Numa, para muitos, inversão de papéis, o Thio Therezo gastou todo o seu norueguês para consolar o pobre coitado que não se cansava de se desculpar. Ao final da longa ligação, Thio Therezo voltou ao seu jantar e apenas reclamou que a comida tinha esfriado. Estávamos todos muito amuados e não conseguíamos entender como ele agora devorava alegremente, fria que fosse, sua comida predileta, preparada às pressas pela minha mãe naquele que seria o seu dia!
Como só poderia acontecer, a notícia vazou e a Fundação Nobel teve que vir a público negar qualquer confusão.
Sempre que se refere a essa estória, Thio Therezo apenas menciona, às gargalhadas, que perdeu a guerra pela paz... Mas, no fundo, sabemos que ele sente o fato de não ter ganho o prêmio que iria viabilizar financeiramente o “Instituto Thio Therezo em prol da Educação”, seu sonho desde sempre.
Ele nunca mais foi indicado ao Nobel da Paz, a mágica se quebrara e os inimigos, de sobreaviso, sempre conseguiam boicotar até as indicações que ameaçavam surgir ano a ano, aqui e acolá. Ainda tentaram articular um Nobel de Literatura, mas isso não prosperou e a única deferência que sobrou foi o presidente da Fundação ligar ao Thio (sempre às cinco da manhã, o que gerava anualmente o mesmo comentário sobre os hábitos europeus) para comunicar-lhe, em primeira mão, os agraciados daquele ano. Parece que só o Thio Therezo tem essa deferência.
Bom... é o que dizem por aí...
quinta-feira, 22 de outubro de 2015
Mas isso não é uma ciência exata...
“... mas isso não é uma ciência exata...”
Tenho certeza de que você já ouviu essa frase e, na maior parte das vezes, é apenas uma óbvia constatação. Mas, por vezes e talvez poucas, tem um significado meio escondido, algo insinuando que a argumentação lógica acabou, que é um fato a ser aceito imperiosamente, e sem contestação, pelo interlocutor. Assim como “é para a sua própria segurança” ou “você vai entender isso quando for mais velho”, a frase evocando a negação de exatidão de algo é para por fim a uma conversa, a uma discussão, a qualquer explicação lógica. É assim e ponto final!
Mas me lembro de uma vez em que ouvi isso em um contexto que, a rigor, era absurdo e que sim significava uma maneira de se terminar, unilateral e arrogantemente, uma discussão.
Tinha comprado um apartamento na planta e, por precaução, pedi uma planta da garagem ao corretor. Tinha comprado três vagas, uma dupla e uma simples, essa de tamanho grande, enquanto que as outras de tamanho pequeno, todas elas bem delimitadas. Pois bem, quando recebi o apartamento, percebi que só duas vagas estavam demarcadas, a que devia ser a simples, e a outra, a dupla, ocupando apenas o lugar de uma simples. As duas no tamanho pequeno. Nem precisa dizer que os pilares na garagem estavam separados por medidas menores do que as indicadas na planta que tinha em casa...
Bom, reclamei, e reclamei, foram me passando de “responsável” em “responsável” até que não teve jeito e um dos diretores da construtora me ligou para conversar. Nem vou me ater ao fato de ele ter me tratado como uma criança de cinco anos, nem vou me restringir à sua usual e própria arrogância. Ele, sem conseguir explicar direito o porquê de estar entregando duas vagas de garagens quando eu tinha comprado três e ainda mais em tamanhos distintos, logo apresentou a solução dele. Que eu poderia usar a vaga do zelador, que ele próprio conversara com o zelador que abriria mão de sua vaga para que eu estacionasse lá o meu terceiro carro, carro que, aliás, nunca teria.
Ãh? Como?
Senti que ele esperava receber aplausos e compungidos agradecimentos por ter resolvido a questão tão genialmente. Mas, para o seu visível desapontamento, eu me restringi a perguntar o que aconteceria quando houvesse alguma troca de zelador, o que aconteceria se o condomínio não concordasse com essa solução e, principalmente, como eu poderia vender, no futuro, três vagas e só disponibilizar duas ao comprador? Além do mais, isso pareceria óbvio a qualquer um, eu queria receber as vagas de garagens que comprei, no tamanho que as comprei, mesmo que não fosse usá-las todas.
A questão, na realidade, era que, por um aparente erro de construção, as paredes da garagem tinham sido feitas com uma distância menor do que a projetada e o autodenominado gênio da raça com quem eu falava não podia nem queria assumir isso. No meio da discussão, quando claro estava que eles teriam que fazer alguma coisa e que tinham errado feio na execução da obra, ele me solta o
“... mas a engenharia não é uma ciência exata... essas coisas acontecem...”
Ãh? Como? Quer dizer que vocês não podem me assegurar com certeza que o prédio não irá cair? Que apenas acham que construíram direito?
Tem horas que a gente não sabe se ri ou não. Tentei manter a seriedade necessária para tratar desse assunto e, após explicar a minha formação que inclui sim alguns anos de engenharia, consegui com que eles me escutassem e, ao final, a empresa fez os reparos e eu tive claramente demarcadas as minhas vagas de garagem. Com a boa relação que tenho com meu vizinho, nenhum de nós se incomoda em fazer manobras extras para estacionarmos nossos carros no espaço inexato a que nos coube.
A mente voa nessas horas e acabo de me lembrar de outra estória envolvendo compras de imóveis. Conto-a, é rapidinho...
Preço acordado na compra de um imóvel, lá fui eu para assinar o contrato e pagar a primeira parcela, dividida como usual em vários cheques. Mas chamou-me a atenção que um desses cheques era destinada ao pagamento de um advogado. Perguntei e fui informado que a construtora contratara uma empresa de advocacia para me auxiliar na confecção do contrato, mesmo ele sendo padrão e não havendo possibilidade de modificações. Mas que o advogado estava sim à minha disposição.
Ãh? Como? A construtora contratou um advogado, às minhas custas, para pretensamente defender os meus interesses? Ãh? Como?
“É isso mesmo, senhor...”
E nada que eu falasse me fez convencer o vendedor de que quem iria defender os meus interesses era alguém de minha confiança e não alguém contratado pela parte oposta...
É para a sua própria segurança... quando você for mais velho, irá entender... e, é claro, isso não é uma ciência exata...
quinta-feira, 15 de outubro de 2015
quinta-feira, 8 de outubro de 2015
A turma do Costa e o desafio de xadrez - Capítulo II
[[Aproveitando a semana da criança, estou publicando aqui a metade do segundo capítulo de meu e-book infanto-juvenil “A turma do Costa e o desafio de Xadrez”. O primeiro Capítulo apareceu no blog em 28/Maio/2K15]]
Leia o Primeiro Capítulo – Abertura
Peão na quarta do Rei
Bebeto saiu apressado da escola, seguiu pela Rua João Cachoeira em direção à Rua Jesuíno Cardoso. Ele, normalmente, variava os caminhos que fazia para voltar à sua casa, por vezes dando uma volta enorme para chegar até lá. Ele gostava muito de passear pelo bairro, observando cada detalhe das casas por onde passava, gostava de ver as pessoas se ocupando de seus afazeres cotidianos, enquanto pensava nas várias atividades em que normalmente se metia. Mas hoje, no entanto, ele foi pelo caminho mais curto, direto para casa, pois não havia muito tempo a perder. Foi pensando no Desafio, relembrando suas regras.
O Desafio de Xadrez era uma disputa entre os colégios Costa Manso e Arquimedes Correia que o Bazar do Chico, lá da Rua João Cachoeira, patrocinava todos os anos. Aliás, o Chico ia pessoalmente até o local do “grandioso embate intelectual”, como ele próprio definia o Desafio, para desejar sorte a todos os competidores e fazer a sua propaganda. Alternando, a cada ano, os dois colégios como sede, o Bazar providenciava toda a infra-estrutura necessária para a disputa. Este ano o Desafio seria no Costa, naquele grande pátio coberto do centro do colégio, onde acontecia tudo o que realmente importava aos alunos.
Bebeto sabia o quão difícil era ganhar esta disputa, pois o Arquimedes vinha bem preparado, seus jogadores treinavam constantemente para aqueles jogos. A equipe de cada colégio tinha cinco jogadores e cada um jogava dois jogos. As rodadas eram nas manhãs de um sábado e de um domingo, em partidas que valiam um ponto ao vencedor e meio por cada empate. Ao final das dez partidas, se houvesse empate, então as equipes jogariam uma melhor de três mas com partidas mais rápidas, com no máximo vinte minutos cada, as chamadas partidas relâmpago. Nos dois últimos anos, o Costa tinha perdido por 6 a 4 depois das dez primeiras partidas, sem nem sequer levar o desafio para o desempate, o que deixava a todos por lá muito desanimados. Talvez fosse por isso que estava tão difícil agora encontrar novos jogadores dispostos a entrar na equipe.
“Mas esse ano será diferente, muito diferente!” pensou em voz alta o Bebeto e, percebendo que estava no meio da rua, respirou aliviado ao se certificar que ninguém o tinha escutado.
O Bebeto era um destes garotos que se envolviam em tudo no colégio e sempre com bastante ânimo. Quer seja um desafio de xadrez como esse, quer seja engordando a torcida para um jogo de handebol, de basquetebol ou o que seja. E quer seja também para organizar, normalmente junto à Thaís, um festival de cultura ou a feira de ciências ou até as festas juninas. Ele estava sempre pronto a ajudar, animado que era. Não era muito alto ou forte, cabelo negro escorrido na testa e sorriso constante na boca. A única pessoa que realmente conseguia tirá-lo do sério era a sua amiga Thaís que, consciente deste seu poder, aproveitava-se disto, frequentemente.
O Bebeto não era um bom jogador nos jogos de bola, ele preferia participar, nestes casos, da barulhenta torcida do colégio engrossando o coro do grito de guerra do Costa. Mas todo mundo reconhecia que xadrez era o seu forte. Ele passava horas estudando suas partidas, analisando os lances que tinha errado, conhecendo novas aberturas e defesas, aprimorando-se. Usava, além dos inúmeros livros de xadrez que tinha, a internet para estar sempre atualizado. Mesmo assim, sempre tinha tempo para as brincadeiras com os amigos, as baladas, o cinema... A Thaís ficava sempre intrigada querendo saber como ele conseguia tempo para fazer tudo aquilo, “você não perde uma festa, Bebeto!” ela costumava dizer. E o Bebeto só sorria, todo orgulhoso. Todos gostavam muito de seu jeito.
Tão logo chegou à casa azul, que era como ele chamava a casa de esquina onde morava com sua família, foi correndo para a cozinha para ver se a comida já estava pronta. Queria almoçar rapidamente e voltar para o colégio. Tinha marcado a reunião com a Thaís e os outros candidatos à equipe do Desafio para as duas horas da tarde, tinha tempo de sobra, mas queria chegar antes, a ansiedade o acelerava.
quinta-feira, 1 de outubro de 2015
Chuvas - I
[[Esse é mais um conto de meu primeiro livro, “Contos que conto”, que estou republicando aqui]].
Primeira - Chuviscos
Desde o dia em que meu irmão caiu doente, resolvemos nos mudar da casa grande que temos na capital para este pequeno sítio, meia hora da próxima cidade.
Da família grande a princípio e dizimada e desunida por estas tragédias de nosso tempo, só sobramos nós dois, conforme nossa própria decisão. O meu irmão doente e eu, sua irmã mais velha.
Temos um casal como vizinhos e caseiros que se mantêm à exata distância da casa principal e, principalmente, de nossas vidas. Só não os dispensei porque são os únicos que podem me ajudar caso aconteça algo a meu irmão.
Nos mudamos na quinta-feira, após ter convencido o médico que isto seria o melhor para o meu irmão, tão doente que estava. Teve alta na quarta-feira e nos mudamos na quinta mesmo, sem mais demora. Improvisadamente é certo; ainda faltam os móveis que tanto gostamos mas que só virão na próxima semana.
E os móveis daqui irão para o lixo com certeza.
Sexta-feira à noite choveu. Foi um dia calmo, com poucas coisas a fazer. Algumas arrumações, aquele excitamento que sempre se tem quando se muda. De noite choveu.
Chovia e eu olhava pelo vidro da janela, fechada para que os insetos não nos atrapalhem durante a noite e lá estavam eles grudados do lado de fora do vidro a nos vigiarem, a esperarem com certeza que a chuva passe ou o momento oportuno em que eu abra a janela e lhes dê aconchego.
O meu irmão está sentado na velha poltrona com os olhos fechados a fingir que dorme, a ressonar fingidamente. A fingir que dorme só para não conversar comigo, como sempre faz quando estamos a sós. Respeito sua vontade e volto a olhar pela janela a chuva que continua a cair e os impacientes insetos que se agitam contra o vidro, sabe-se lá com que intenção. Quão estúpidos eles são.
Quão estúpido este pessoal da transportadora é. Eu os avisei com antecedência da mudança mas na última hora eles sempre inventam alguma desculpa. Queria que tudo estivesse aqui quando eu trouxesse meu irmão direto do hospital.
Viro-me um pouco, um pouco a tentar esquecer-me da chuva e dos malditos insetos, e vejo que ele já não ressona mais e que sua cabeça caiu um pouco para o lado.
Daqui dá para se ver a casa dos caseiros que cuidam de tudo. Fico por um momento a observar as luzes lá na casa deles. Quem será que está acordado a uma hora destas? A chuva parece que piorou. Alguns insetos, os menores, conseguem penetrar por algum vão da janela, mas que não consigo achar.
Já é tarde e resolvo ir dormir. Passo por meu irmão que está sentado de uma maneira muito esquisita. Tento ajeitar o seu corpo pesado. Não parece mais fingir dormir. Desisto. Faz calor agora. Apago as luzes da sala e vou-me. Deixando na sala o meu irmão doente que comigo, sua irmã mais velha, somos os únicos que sobramos de nossa família. Conforme nossa própria decisão.
[[Projeto Pegaí: é um belíssimo projeto de incentivo à leitura criado e administrado pelo Prof. Idomar Augusto Cerutti no Paraná. Na semana passada, eu doei exemplares de três de meus livros para serem distribuídos nas Estantes de Leitura. Clique Aqui]]
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